Rúben Correia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Rúben Correia
Rúben Correia
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Licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos pela pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa - Português Língua Estrangeira/Língua Segunda na referida. Prepara atualmente um doutoramento na mesma área.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

As palavras da mesma família, também as podemos considerar no campo lexical? Posso considerar como resposta: maré, marinheiro ou marisco no campo lexical de mar?

Obrigada.

Resposta:

Campo lexical e família de palavras são dois conceitos que frequentemente se intersectam, como no exemplo que a consulente apresenta. De acordo com o Dicionário Terminológico (DT), «campo lexical» é definido como um «conjunto de palavras associadas, pelo seu significado, a um determinado domínio conceptual». O DT considera o conjunto de palavras jogador, árbitro, bola, baliza, equipa e estádio parte do campo lexical de futebol. Em relação ao conceito de família de palavras, e ainda segundo o DT, este é entendido como o «conjunto das palavras formadas por derivação ou composição a partir de um radical comum». Neste sentido, os exemplos que a consulente apresenta – maré, marinheiro e marisco – são parte da família de palavras de mar e, ao mesmo tempo, do seu campo lexical. No campo lexical de mar constam também palavras como onda, costa, litoral ou corrente (marítima). Estes exemplos, por outro lado, dado não partilharem o mesmo radical de mar, não podem ser vistos como parte da sua família lexical. A família de palavras é, neste caso, um subgrupo do campo lexical de mar.

Pergunta:

Gostaria de saber se é possível fazer a translineação da palavra paisagem, separando a vogal a do i, uma vez que na minha opinião não se trata de um ditongo, visto resultar da palava francesa paysage.

Obrigada.

Resposta:

A divisão silábica da palavra paisagem, como a consulente indica, derivada do francês paysage, pode ser abordada através de duas perspetivas. Uma primeira perspetiva, mais conservadora, indica a seguinte divisão: pa-i-sa-gem. Nesta perspetiva, verifica-se um hiato entre a primeira e a segunda sílaba. No entanto, outras fontes, tais como o Vocabulário Ortográfico do Português (no Portal da Língua) e o dicionário Priberam, defendem tratar-se de um ditongo: pai-sa-gem.

Em relação à translineação, seguindo a primeira perspetiva, poderemos ter:

pa-

isagem

Dado tratar-se de um hiato, como indicam Cunha e Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, 3.ª edição, 1986, p. 68), as duas vogais separam-se: mi-ú-do; ra-i-nha.

Na perspetiva defendida pelo VOP e pelo Priberam, a da existência de um ditongo, não se pode proceder à separação, sendo que, neste caso, teremos:

pai-

sagem

Pergunta:

Tenho visto vários estabelecimentos do tipo bar/restaurante designados por "champanharia"/"champanheria". Este estrangeirismo é correcto?

Resposta:

A palavra champanharia, embora não dicionarizada dado tratar-se de um conceito recente, deriva da forma portuguesa – champanhe – do vinho originário da região francesa de Champagne. À base de derivação champanh- (radical de champanhe) juntou-se o sufixo nominal (que permite formar novos nomes a partir de nomes preexistentes) -aria, que neste caso veicula a ideia de atividade ou ramo de negócio. Este é, de resto, um sufixo de origem latina muito produtivo na língua portuguesa, como é o caso de pastel e pastelaria, papel e papelaria e ainda livro e livraria.

Note-se, contudo, que o consulente apresenta também a variante “champanheria”. Neste caso o processo de formação consiste na afixação do sufixo -eria à base de derivação. Tal forma, de acordo com uma leitura mais conservadora da morfologia do português, não seria a mais adequada para o sufixo em apreço. Além disso, a versão eletrónica do Dicionário Houaiss (versão 1.0, 2001) afirma que -eria constitui um sufixo de origem francesa (-erie), em uso no português desde o século XV, alvo da rejeição purista a que acima aludimos. Não obstante, o mesmo dicionário indica que se consagraram certas oscilações no uso que tornam -eria tão legítima como -aria. Entre estes casos, encontram-se, cafeteria/cafetaria, bilhetaria/bilheteria e charcutaria/charcuteria. Recorrendo a uma pesquisa na rede, por intermédio de um motor de busca, verificamos que tal parece ser a situação de champanharia/"champanheria", em que as duas formas são atua...

Pergunta:

Como se escreve: «calendário de aniversários», ou «calendário dos aniversários».

Resposta:

Pode escrever-se das duas maneiras que indica. No primeiro caso, «calendário de aniversários», sem a contração da preposição com o artigo definido («os aniversários») e, no segundo caso, com a contração da preposição com o artigo. Neste último caso, a frase ajuda a tornar mais concretos os aniversários que consituem um grupo bem identificado, por exemplo, «o calendário dos aniversários dos funcionários da empresa». Tem, portanto, um sentido mais específico. No primeiro caso, «calendário de aniversários» tem um significado mais geral e pouco específico, indicando apenas a função do calendário, isto é, «um calendário usado para assinalar aniversários».

Pergunta:

Estou tendo problemas com a versão arcaica do português e gostava de saber se conhecem algum sítio ou dicionário que pudesse me ajudar.

Minha história:

Resolvi ler Os Lusíadas em uma versão original em vez de uma adaptada. Pensei que não seria grande problema, já que estou a estudar o português europeu há alguns meses. Engano meu.

Um exemplo é a palavra ũa, que, de tão curta e tão simples, se torna muito impossível de pesquisar pelo Senhor Google ou seus semelhantes.

Abraços e parabéns pelo projeto.

Resposta:

Ũa (uma) é a forma arcaica do artigo indefinido feminino uma. O til indica a existência de uma vogal nasal seguida de outra vogal. Esta forma arcaica do artigo deriva do numeral cardinal latino ūnus, a, um. Na evolução do latim para o português, o numeral ūnu sofre síncope (ou seja, desaparecimento) da vogal dental nasal [n], resultando na nasalização da vogal que a precedia e no dissílabo ũu, também grafado hũu (José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa); posteriormente verificou-se a supressão da vogal não nasal de modo a cessar o hiato (encontro entre duas vogais), resultando assim ũ, escrito hoje um. Em ũa, verificou-se igualmente a síncope da consoante dental nasal [n], resultando a forma que a consulente refere.

Quanto à sua evolução de ũa até uma, explica Silveira Bueno (Formação Histórica da Língua Portuguesa, 1958) que a inclusão da consoante bilabial nasal m se pode ter devido a analogia gráfica com a forma do artigo indefinido masculino um. Já Leite de Vasconcelos (Lições de Filologia Portuguesa, Lisboa, Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional, 1926, p. 295) defende que: «O numeral um provém da forma antiga ũu, do latim ūnu-. O numeral uma provém da forma antiga ũa, pela intercalação da consoante labial nasal m depois de uma vogal também labial e nasal (à semelhança do que aconteceu em vinho, de vĩo, onde uma consoante palatal-nasal se intercalou depois de uma vogal da mesma natureza. A vogal nasal do feminino manteve-se até tarde na língua literária (na popular ainda hoje se conserva)...