Pedro Mateus - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Pedro Mateus
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Pedro Mateus, licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa; mestrado em Literaturas Românicas, na área de especialização Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea pela mesma Faculdade.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Suponha que, em uma festa, Ana não comeu nenhum doce, Bia comeu um doce, Carla comeu dois doces, e Daniela comeu três doces. A pergunta «Quem comeu menos doces?» diz respeito somente às pessoas que comeram doces (e a resposta seria «Bia, pois ela comeu apenas um doce»), ou abrange todas as pessoas que estavam na festa, independentemente de terem comido doce ou não (e a resposta seria «Ana, pois ela não comeu nenhum doce»)? Gostaria de saber quais são as implicações do termo «menos» nessas frases.

Em um caso semelhante, quando digo que uma fábrica A produz menos poluição que uma fábrica B, estou, obrigatoriamente, afirmando que a A produz poluição, ou há a possibilidade de interpretar que a fábrica A produz menos poluição que a B porque, na verdade, ela nem sequer produz poluição?

Desde já, agradeço-lhe os esclarecimentos. Parabéns pelo importante trabalho deste site, sempre muito útil!

Resposta:

Numa perspetiva meramente matemática e mais puritana do uso da língua, de facto, quando o produtor do enunciado afirma, por exemplo, que «a fábrica A produz menos poluição do que a fábrica B», subentender-se-á, em princípio, que ambas produzem poluição, ainda que uma o faça menos do que a outra.

Porém, de um ponto de vista menos formal e puritano do uso quotidiano da língua, tudo dependerá, creio, da intenção do enunciador e do nível de restrição das respetivas perguntas. Assim, se a pergunta for mais lata e não restringir suficientemente os universos dos visados, a resposta poderá igualmente apresentar uma margem limitativa inferior; por outro lado, se a pergunta restringir, à partida, a latitude dos universos visados, a resposta deverá também ser necessariamente mais restrita.

Deste modo, será aceitável e nada chocante, na minha opinião, que a uma pergunta mais lata, do tipo «quem comeu menos doces?», a resposta possa ser «foi a Ana, pois ela não comeu nenhum doce» (podendo aqui vislumbrar-se até, eventualmente, uma ponta de intenção irónica); contudo, uma pergunta mais limitativa, do género «De todos os que comeram doces nesta festa, quem é que comeu menos?», exigirá certamente uma resposta muito mais objetiva.

Agradecimentos pelas palavras finais.

Pergunta:

Gostava de saber quais são as diferenças de uso entre «seja como for» e «fosse como fosse». Mais concretamente, leio: «seja como for, Afonso Henriques, ao proteger os eremitas, devia apreciar vivamente o seu fervor.» Não sería mais correto «fosse como fosse, Afonso Henriques, ao proteger os eremitas, devia apreciar vivamente o seu fervor»?

Muito obrigado.

Resposta:

A expressão «seja como for», no excerto sugerido pelo consulente, redigido originalmente pelo professor José Mattoso, apresenta o mesmo valor semântico, por exemplo, da locução «De qualquer forma» («De qualquer forma, Afonso Henriques, ao proteger os eremitas, devia apreciar vivamente o seu fervor»), sendo genericamente imune ao tempo verbal imposto pelo enunciado.

Já a expressão «fosse como fosse», apesar de poder igualmente ser substituída pela locução referida («De qualquer forma...») apresenta uma vinculação temporal muito mais estanque, visto que, em princípio, se deverá aplicar apenas a enunciados marcados por tempos verbais pretéritos, ex. (*/? = agramatical ou marginal):

«Seja como for, ele não devia ter saído de casa.»

«Fosse como fosse, ele não devia ter saído de casa.»

«Seja como for, ele não deve sair de casa.»

*/? «Fosse como fosse, ele não deve sair de casa.»

ɾɐ

Pergunta:

É erro dizer: «significa dizer»? Diz-se apenas «significa», ou «quer dizer»?

Resposta:

A expressão «significa dizer» é normalmente aceite na língua portuguesa e terá sensivelmente o mesmo sentido que «quer dizer», ex.:

«Volto a Portugal convencido de que a Amazónia deve ser tratada como uma floresta tropical, o que significa dizer [= quer dizer] que os países ricos, especialmente os europeus, devem mudar a sua forma de ver a região»;

«Votar não significa dizer [= quer dizer] não à regionalização, mas, sim, transferi-la para uma nova legislatura, permitindo que o processo seja reativado numa base mais sã do que aquela que agora nos apresentam»;

«Isto significa dizer [= quer dizer] que não foi estabelecida qualquer ligação entre este dinheiro e os quase 50 mil contos deixados por Strecht Monteiro na sede da Emaudio»;

«É Bresson, o que significa dizer [= quer dizer] que é outra coisa»;

«Para nós, dizer eu sei significa dizer [= quer dizer] que se sabe»;

«Porém, isso não quer dizer [= significa dizer] que o projeto da atual direção da Casa dos Bicos esqueça os nossos olhares.»

«Isto quer dizer [= significa dizer] que, nesta altura, 1500 novos homens e mulheres das forças de segurança terminam a parte escolar.»

Note-se, contudo, que em determinados...

Pergunta:

Conheço muitos portugueses que falam com redundâncias, também na TV, como: «a mim ninguém me fala»; «já te falei-te a ti»; «mandou-me a mim».

Estão certos?

Resposta:

A colocação dos pronomes clíticos (átonos, na tradição normativa) na língua portuguesa é, como se sabe, uma das áreas mais complexas – e que mais dúvidas suscita – ao nível da análise linguística.

Como Mateus e outros (Gramática da Língua Portuguesa, pp. 829-830) salientam, «[...] os pronomes clíticos, diferentemente das preposições e dos artigos, mesmo quando designam um complemento do verbo, não ocorrem na posição canónica característica desse complemento, mas antes em adjacência estrita ao verbo»:

Ex.:

(1.a) Eles enviaram-lhes todas as informações pela Internet;

(1.b) Eles enviaram todas as informações [aos que as solicitaram] pela Internet;

Por outro lado, e apesar de, no contexto do português de Portugal – ao contrário do que acontece ao nível do português do Brasil –, a posição mais comum dos pronomes ser a enclítica (isto é, à direita do verbo) – ex.: «O João emprestou-me o carro» –, a verdade é que, quando, nos enunciados, se verifica a presença dos chamados atratores de clítico ou proclisadores(1) (= atratores de próclise), estes obrigam os clíticos a localizar-se à esquerda do verbo, ex. (* = agramatical):

(2.a) Ele só os comprou porque estavam em promoção;

(2.b) * Ele só comprou-os porque estavam em promoção.

Pergunta:

Nenhum dos dicionários de língua portuguesa que consultei inclui o termo "fusopatia", o qual deverá referir-se ao estado de cansaço e generalizado mal-estar provocado pelas diferenças horárias em consequência das viagens de avião, mais conhecido pela locução inglesa jet lag. Existe tal termo? Como neologismo estaria bem formado? É correto/aceitável o seu uso?

Resposta:

O termo "fusopatia" não se encontra registado em nenhum dos instrumentos linguísticos de referência consultados.

Contudo, o seu uso parece ser relativamente frequente, nomeadamente em sítios italianos, ainda que também não seja ratificado pela generalidade dos dicionários italianos consultados.

De acordo, por exemplo, com o Dicionário Houaiss, o elemento de composição pospositivo patia (do grego páthēēs) veicula a ideia de «estado passivo, sofrimento, mal, doença, dor, aflição, suportação + o sufixo formador de substantivos abstratos -ia em termos científicos do século XIX em diante». Assim, surgem, na língua portuguesa, palavras como retinopatia (= patologia da retina), psicopatia (= doença mental) ou gastropatia (= doença do estômago).

Deste modo, e a avaliar pelos exemplos elencados, não me parece acurada a opção pela formulação "fusopatia", tendo em conta que jet lag¹ não será uma afeção do fuso horário, mas, sim, uma alteração patológica do corpo, desencadeada por «viagens muito longas de avião através de zonas com diferentes fusos horários» (infopédia).

Tendo em conta a definição de jet lag aqui transcrita, julgo que a melhor forma de traduzir a referida expressão será aquela que é proposta, por exemplo, pelo dicionário Oxford Escolar, isto é, «fadiga de voo».