Pedro Mateus - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Pedro Mateus
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Pedro Mateus, licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa; mestrado em Literaturas Românicas, na área de especialização Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea pela mesma Faculdade.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho algumas questões a respeito do correto uso de algumas palavras próprias da minha área de estudo, a biologia.

Qual o género das palavras enzima e mitocôndria/mitocôndrio?

Diferentes docentes têm as suas preferências pessoais. Eu sempre usei o género feminino para ambas as palavras.

Resposta:

O vocábulo enzima (do alemão Enzym) é referido, em todos os dicionários e instrumentos de referência consultados, como uma palavra feminina (ex.: Priberam, VOP), sendo que o mesmo acontece com o termo mitocôndria, não surgindo «mitocôndrio» em nenhum dos instrumentos linguísticos a que recorri (ex.: VOP, Infopédia, Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Num manual de apoio à disciplina de Português, encontrei o exercício que passo a transcrever:

«Ler um autor é criar um novo texto, saído do que lemos, através de uma leitura original, valorativa deste ou daquele aspeto que nos encontra ou nos agride, semelhante ou diferente de nós, da nossa maneira de ser e de estar, das nossas inquietações e aspirações, usufruindo do Escritor, das múltiplas vias, por ventura nem sempre conscientes, que nos franqueia das sugestões, da riqueza imaginativa, da sua capacidade de observar e interpretar o mundo e os outros. (…)»

Em «que nos franqueia», o antecedente do pronome que é...

a) (d)o Escritor.

b) conscientes.

c) (d)as múltiplas vias.

d) nossas inquietações e aspirações.

Gostaria de saber se a resposta correta é «d(o) Escritor» ou «(d)as múltiplas vias», sendo que, neste caso, há um erro de concordância verbal.

Resposta:

Julgo que a solução correta será «escritor»: «usufruindo do Escritor [...], que nos franqueia das sugestões, da riqueza imaginativa, da sua capacidade de observar e interpretar o mundo e os outros. […].» Repare-se que, no seio da enumeração proposta — «[...] das sugestões, da riqueza [...] da sua capacidade de observar e interpretar o mundo e os outros» —, o pronome «sua», em «da sua capacidade de observar», parece remeter claramente para o constituinte «escritor».

Pergunta:

Tenho algumas questões a respeito do correto uso de algumas palavras próprias da minha área de estudo, a biologia.

A forma mais adequada, em português europeu, é glicose, ou glucose?

Sempre pensei que glucose fosse a forma inglesa, e glicose, a forma portuguesa, mas muitos professores meus parecem preferir glucose (embora aparentemente usem /i/ em formas derivadas, como glicólise).

Resposta:

Tanto o Vocabulário Ortográfico do Português (VOP), da responsabilidade do Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC) como o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Porto Editora, assim como o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras, registam as duas formas do nome feminino — glicose e glucose —, o que atesta a legitimidade dos dois termos.

Verificámos, contudo, que alguns dicionários consideram glicose como a forma mais adequada, como é o caso do Dicionário Priberam — que afirma que glucose é uma forma incorreta — e do Dicionário Houaiss, que não contempla a entrada glucose.

No entanto, e a corroborar a posição dos três atuais vocabulários ortográficos, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, e a Infopédia registam, também, as duas formas — glicose («do grego glykýs, "doce" +-ose») e

Pergunta:

Sempre estudei que a gramática e o bom senso nunca abonaram a construção se (com função de sujeito) e o pronome o e suas flexões a, os e as (objeto direto), por ser contrária à índole da língua portuguesa.

Uma questão de concurso público, entretanto, afirmou que a construção «podem ser descritas» equivale à construção «pode-se descrevê-las».

Ora, esta última maneira de construir fere precisamente a norma gramatical supramencionada, porquanto o pronome se está claramente exercendo a função de sujeito da locução verbal ou conjugação perifrástica «pode descrever». Conforme tudo o que pude equilibradamente compreender ao longo de mais de vinte anos de dedicação a estudos gramaticais, o modo correto de escrever o equivalente a «podem ser descritas» é «podem-se descrever» ou «podem descrever-se».

O torneio «pode-se descrevê-las», além de agredir hediondamente a tradição gramatical e o gênio da língua portuguesa estreme, não me parece nada passivo, uma vez que o se (função francesa) está desempenhando a função de sujeito, o que vai também de encontro à origem do idioma português (o se do latim não exercia a função nominativa).

Importa-me saber a vossa opinião a respeito dessas considerações.

Resposta:

De facto, como notam Telmo Móia e João Andrade Peres (Áreas Críticas da Língua Portuguesa, p. 237), a este propósito, «[...] o clítico se apassivante acompanha sempre formas de verbos transitivos, flexionados no singular ou no plural consoante o número gramatical do argumento com que concordam [...]:

(1) Comprou-se um livro encadernado;

(2) Compraram-se vários livros para a biblioteca.

Em qualquer destas frases, a expressão com que o verbo concorda é um argumento interno que se realiza numa frase ativa como um complemento direto, razão por que afirmamos estar perante uma construção passiva (de clítico)».

Já no que diz respeito ao clítico se impessoal, referem os citados investigadores (op. cit., pp. 236-237) que «é uma expressão que indica a existência de um sujeito indeterminado numa frase. [...]:

(3) Naquela festa, cantou-se a noite inteira.

(4) Vive-se bem em países de clima mediterrânico.

(5) Ouve-se ruídos durante a noite.

Este clítico impessoal acompanha sempre formas verbais singulares. As frases em que ele ocorre são frases de sujeito indeterminado em que o verbo surge numa forma de terceira pessoa do singular, não concordando com qualquer expressão da frase. Distingue-se, pois, n...

Pergunta:

Como se designa o processo fonológico que dá conta da distorção do fonema /r/ substituído pelo fonema /R/, ficando deste modo a pronúncia do fonema /r/ indevidamente "carregada"?

Resposta:

A consoante representada por /R/ é normalmente chamada vibrante uvular, tendo em conta que a sua produção implica a ação da úvula (cf. Mateus e outros, Gramática da Língua Portuguesa, p. 1000), sendo que à representada por /r/ se costuma chamar vibrante alveolar múltipla.

Assim, o processo a que a estimada consulente se refere consistirá na uvularização do /r/: «Uma das últimas transformações que estão a produzir-se no sistema consonântico português consiste na uvularização, a partir da região de Lisboa, da pronúncia do r geminado (p. ex.: rato, razão, carro, terra; às vezes, a dorso uvular1 R chega a uma dorso velar1 surda x); esta evolução portuguesa autóctone, já observada no século passado (Gonçalves Viana, Essai de phonétique et de phonologie de la langue portugaise d´après le dialecte actuel de Lisbonne, separata de «Romania», pp. 29-98) provavelmente terá uma extensão maior por causa da norma lisboeta» (Timo Riiho, Portugiesisch: Interne Sprachgeschichte und Entwicklungstendenzen, Evolução linguística interna, publicado em Lexikon der Romanistischen Linguistik, Band VI, 2. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1994).

Este processo fonético é levado ao extremo por alguns falantes da região de Setúbal, por exemplo.