Miguel Moiteiro Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Miguel Moiteiro Marques
Miguel Moiteiro Marques
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Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Portugueses e Ingleses) pela Faculdade Letras da Universidade de Lisboa e mestrando em Língua e Cultura Portuguesa na mesma faculdade.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Percebi que na língua portuguesa, apesar de para minha pessoa parecer incorreto, existem diversas palavras que terminam com a letra n. Exemplos: hífen, hímen e sêmen. Existe alguma regra no idioma para estas palavras terminarem com a letra n ao invés de m?

Resposta:

A razão para as palavras que o consulente apresenta terminarem em n é etimológica. Estas palavras entraram tardiamente na língua portuguesa por via erudita, daí não terem sofrido praticamente alterações. De resto, Cunha e Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo, indicam que «em final absoluta de palavras cultas [ocorre] a articulação ápico-alveolar da consoante n» (p. 47), ou seja, a consoante nasal pronuncia-se da mesma forma como em neve ou nada.

Há uma regra a ter em consideração no que respeita à acentuação: as palavras terminadas em n são graves, e a sua acentuação deve ser marcada graficamente.

Pergunta:

É o pão nosso de cada dia ouvir e ler frases do género «Manuel foi um dos que arranjou emprego». Como o Manuel foi um dos vários a quem isso aconteceu, penso que a única maneira correcta de dizer/escrever a frase será: «Manuel foi um dos que arranjaram emprego.»

Mas será que estou enganado e a primeira forma é aceitável? A dúvida põe-se-me por já ter deparado com concordâncias desse tipo na prosa de excelentes escritores. Até José Carlos de Vasconcelos, no livro Conversas com Saramago (p. 21), põe na boca do nosso Prémio Nobel o seguinte: «(...) um dos [sonhos] que acabou por não se concretizar foi» (etc.). Ora, neste caso, a concordância em questão não só foi utilizada por Saramago (de forma oral, de modo que, a existir erro, é perfeitamente desculpável), como «aprovada» por Vasconcelos, na passagem a escrito da entrevista.

Como sempre, fico antecipadamente grato pela vossa resposta.

Resposta:

Concordamos com a observação do consulente. Na frase que apresenta, o sujeito do verbo arranjar é o pronome relativo que, enquanto o sujeito do verbo foi é Manuel. Sendo relativo, o pronome vai buscar a sua referência a um elemento que, apesar de estar elidido, está subentendido, o qual pode ser pode ser vários (ou outro pronome no plural, como muitos ou aqueles) ou um nome como homens, desempregados, etc. Se fizermos a paráfrase da frase, podem ficar mais explícitas as relações entre os constituintes:

1) «Dos [vários] que arranjaram emprego, Manuel foi um deles.»

No caso da frase de Saramago, a situação é idêntica, com a diferença de termos o verbo semiauxiliar acabar, que flexiona em concordância com o sujeito, e do verbo principal concretizar-se, que está no infinitivo. O sujeito de «acabou por não se concretizar» é o pronome relativo que, o qual vai buscar a sua referência ao antecedente sonhos. Fazendo o mesmo exercício de paráfrase proposto anteriormente, obtemos a seguinte frase:

2) «Dos sonhos que acabaram por não se concretizar, [?] foi um deles.»

Se retirarmos o verbo semiauxiliar, cuja função como verbo aspectual é transmitir a noção de “processo” (ou seja, dando o valor aspectual [+ durativo]), obtemos frases que se comportam de modo semelhante à acima apresentada:

Pergunta:

Como classificar as palavras abaixo e acima quanto ao processo de formação? Podemos considerar abaixo e acima como palavras simples? Derivadas não me parece! No entanto, temos as expressões «a cima», «por cima», «a baixo», «por baixo»... precedidas de preposição. Terá havido evolução das palavras?

Resposta:

Numa só frase, poderemos dizer que os advérbios abaixo e acima, originalmente locuções adverbiais no século XVI, foram formados através de um processo de composição morfológica, o qual, refere o Dicionário Terminológico, «associa um radical a outro(s) radical(is) ou a uma ou mais palavras», não ocorrendo, nestes casos, uma vogal de ligação entre os dois elementos. Diferentes dicionários terminológicos, entre os quais José Pedro Machado, indicam que abaixo resulta da junção da preposição a com o adjetivo baixo substantivado, enquanto no advérbio acima a preposição a une-se ao substantivo cima.

Num artigo sobre os «Adverbiais Portugueses no Século XVI», incluído na coletânea O Português Quinhentista: Estudos Linguísticos (org. de Rosa Virgínia Mattos e Silva Américo Venâncio Lopes Machado Filho), Sônia Bastos Borba Costa observa que estas locuções adverbiais, bem como outras, sofreram no século XVI uma «modificação […] [na qual a] locução se cristaliza em advérbio, por processo de reanálise»1, ou seja, ocorre uma simplificação estrutural entendida como «processo por meio do qual os falantes mudam sua percepção de como os constituintes de uma língua estão ordenados no eixo sintagmático» (Ataliba de Castilho apud Costa, A Gramaticalização, Estudos Lingüísticos e Literários, 1997). Há uma...

Pergunta:

Pelo novo acordo ortográfico, as palavras hidrópsia e oligoâmnios passam a hidropesia e oligâmnios, ou têm dupla grafia?

Resposta:

Relativamente a hidropisia, a palavra já era grafada desta forma antes do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) e não encontrámos qualquer registo da forma hidrópsia (cf. Portal da Língua Portuguesa, dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, Dicionário Houaiss, Priberam, Infopédia, entre outros).

Quanto a oligoâmnios ou oligâmnios, o AO90 também não vem alterar nada, uma vez que as alterações preceituadas no novo acordo dizem respeito à manutenção ou queda de hífen nas formações por prefixação, recomposição ou sufixação1

Não conseguimos determinar se a forma correta é com ou sem a vogal final do prefixo; as duas formas são utilizadas na produção científica da área da medicina, embora pareça haver uma preponderância da opção oligoâmnio. O Dicionário Médico da Climepsi Editores, com adaptação e revisão da edição portuguesa por João Alves Falcato (3.ª edição, de março de 2004), apresenta a opção oligoâmnio («presença de menos de 200 ml de líquido amniótico na cavidade amniótica intacta durante os últimos meses da gravidez»). Por sua vez, o Dicionário de Termos Médicos de Manuel Freitas e Costa, da Porto Editora (edição de 2005), apresenta a op...

Pergunta:

No comentário abaixo que circula pela Internet aparece a palavra mendicar que parece não existir na língua portuguesa. Solicita-se a vossa opinião sobre o assunto.

[Nota: por razões de economia de espaço, o texto apresentado pelo consulente foi reduzido à dimensão necessária para a compreensão da dúvida apresentada.]

«Existe a palavra presidenta? Que tal colocarmos um basta no assunto? No português existem os particípios activos como derivativos verbais. Por exemplo: o particípio activo do verbo atacar é atacante, de pedir é pedinte, o de cantar é cantante, o de existir é existente, o de mendicar é mendicante... Qual é o particípio activo do verbo ser? O particípio activo do verbo ser é ente. Aquele que é: o ente. Aquele que tem entidade.»

Resposta:

A forma mendicar não existe atualmente, mas já existiu como variante culta de mendigar. José Pedro Machado, no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, assinala que há registos de mendicar no século XVI: «e se perdem uns vivendo mal, e outros mendicando, porque não têm outra vida (Arrais, IV, cap. 26, p. 306)».

Tanto a forma mendicar como mendigar derivam do verbo latino mendicare. Como referem Holtus, Metzeltin e Schmitt em Lexikon der Romanistischen Linguistik, as oclusivas surdas latinas p, t e k sofreram uma sonorização (ou  vozeamento) no português, passando a b, d e g, quando na posição intervocálica e antes das vogais a e u (como em amicu- > amigo). A forma popular mendigar entra no léxico do português antigo e sofre essa transformação, enquanto mendicar surge posteriormente e já não sofre este processo linguístico, sendo exemplo do processo de enriquecimento lexical do português clássico1.

De igual modo,