Miguel Moiteiro Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Miguel Moiteiro Marques
Miguel Moiteiro Marques
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Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Portugueses e Ingleses) pela Faculdade Letras da Universidade de Lisboa e mestrando em Língua e Cultura Portuguesa na mesma faculdade.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual das formas é a mais correta?

«Aquele projecto não virá a ser executado.»

«Aquele projecto não irá ser executado.»

Resposta:

Ambas as formas estão corretas e podem ser usadas como verbos auxiliares para a construção de frases que indicam eventos futuros, mas há algumas particularidades semânticas quando recorremos ao verbo vir.

De acordo com o Dicionário Gramatical de Verbos, de Francisco da Silva Borba, o verbo ir indica futuridade quando é usado, entre outras formas, no futuro, como acontece na frase apresentada pelo consulente «Aquele projeto não irá ser executado».

Quanto ao verbo vir, ainda de acordo com a mesma fonte, ao ser usado com a preposição a seguido de infinitivo, como na frase «Aquele projeto não virá a ser executado», indica um aspeto resultativo (resultado final do que o infinitivo indica), o qual poderá ocorrer tanto no passado (caso que vamos colocar de parte, pois está à margem da matéria em causa) como no futuro.

Se pensarmos noutras frases, talvez fique mais clara a subtil diferença entre os verbos:

a) «Ele irá casar-se na próxima semana.»

b) «Ele virá a casar-se na próxima semana.»

Poderá ser apenas uma impressão pessoal, mas julgo que na frase b) sentimos que há implícita uma causa para o ato de casar ou que «ele irá casar-se [em virtude de algo]». Esse algo, fruto de um processo e fonte de causalidade, parece ser um valor semântico acrescentado pelo verbo vir no par de frases em análise. Esse aspeto resultativo estará, então, também presente em «Aquele projeto não virá a ser executado».

Se experimentarmos passar as duas frases para a afirmativa, fazendo uma ligeira mudança no verbo, parece resultar mais claro este efeito. «Aquele projeto irá acontecer» e «Aquele projeto virá a acontecer...

Pergunta:

Gostaria de saber se na frase abaixo é necessário que a palavra Marx esteja entre vírgulas ou se está correta a forma como foi empregada:

«Nessa cidade, Marx até então acostumado com a dinâmica provinciana de sua terra natal, toma contato com o cosmopolitismo.»

Se puderem me explicar qual a regra para esse caso, agradeço muito.

Resposta:

Sobre o uso da vírgula, o Prontuário Ortográfico e Guia da Língua Portuguesa de Magnus Bergström e Neves Reis refere que esta marca de pontuação é usada, entre outros contextos, «para isolar orações relativas explicativas e apositivas». Uma característica das orações relativas é a possibilidade de serem retiradas sem que a frase principal se torne agramatical (incorreta), embora haja sempre uma alteração ou redução do sentido.

No caso da frase apresentada, se retirássemos a oração relativa, ficaríamos com a seguinte forma: «Nessa cidade, Marx toma contato com o cosmopolitismo.» Assim, se mantivermos a oração relativa explicativa, devemos escrever: «Nessa cidade, Marx, até então acostumado com a dinâmica provinciana de sua terra natal, toma contato com o cosmopolitismo.»

Pergunta:

Tenho dúvidas se as frases seguintes com artigo definido são corretas:

a) «Ele cursa a medicina.»

b) «Ela estudou a engenharia civil.»

c) «Ele gosta da química.»

d) «Cursei o direito.»

e) «Os alunos da psicologia foram a uma creche.»

Resposta:

São bem fundadas as dúvidas do consulente: as frases apresentadas não estão corretas porque, como referem Cunha e Cintra na Nova Gramática do Português Contemporâneo, são casos de omissão do artigo definido antes de palavras que designam matéria de estudo, empregadas com os verbos aprender, estudar, cursar, ensinar e sinónimos (note-se que em «da química» e «da psicologia», ocorre uma contração da preposição de com o artigo definido a). Assim, deveremos ter:

a) «Ele cursa medicina.»

b) «Ele estudou engenharia civil.»

c) «Ele gosta de química.»

d) «Cursei direito.»

e) «Os alunos de psicologia foram a uma creche.»

No caso de e), embora esteja ausente o verbo, a relação temática estabelecida entre os elementos alunos e psicologia é semelhante à relação temática e à natureza léxico-semântica de uma frase como «Os alunos estudam psicologia», pelo que também não se deve usar o artigo definido em «Os alunos de psicologia».

Pergunta:

Gostaria de saber se a palavra descente poderá ter tido o sentido de inconveniente ou contrariedade em português antigo.

Resposta:

Não encontrámos indicação, nas obras consultadas sobre a etimologia da palavra descendente – dicionários etimológicos de Silveira Bueno e de José Pedro Machado –, de que este adjetivo tenha tido o sentido de inconveniente ou contrariedade, como é questionado pelo consulente.

Os referidos autores indicam que o termo descendente tem origem no verbo latino descendere,  indicando «aquele ou aquilo que vai de cima para baixo» e, «por extensão de sentido, uma pessoa que procede de um familiar mais antigo». O próprio sentido do verbo descender em português antigo terá sido descer, tal como acontecia com descendere no latim, conforme referem o Elucidário, de Viterbo, e o Dicionário da Antiga Linguagem Portuguesa, de Brunswick.

Pergunta:

Cenário é uma palavra derivada? Qual é a palavra primitiva?

Resposta:

Os dicionários etimológicos de José Pedro Machado (1987), de Silveira Bueno (1964) e de Antônio Geraldo da Cunha (1982) são unânimes ao indicarem cenário como tendo origem no latim tardio, a partir em scaenarius ou scenarius, tendo chegado à língua portuguesa através da palavra italiana scenàrio.

A etimologia da palavra remonta ao termo grego skené, o qual significava «barraca ou qualquer construção ligeira que servisse de abrigo» e também «a parte do palco onde representavam os atores», por oposição a thymele, onde atuava o coro. É do termo grego que deriva a palavra latina scena, mantendo o mesmo significado, e é a partir desta que deriva, por sua vez, scenarius.