Maria Regina Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
 
Textos publicados pela autora

«É evidente que Portugal tem que apostar cada vez mais num modelo assente em trabalho cada vez mais qualificado e, portanto, melhor remunerado.»1

Duas incorecções nesta frase:

Em primeiro lugar, embora esteja generalizado o uso de «ter que» em vez de «ter de», é bom lembrar que «ter de» é a locução adequada quando se pretende referir um dever, uma obrigação: «Portugal tem de apostar cada vez mais num modelo assente em trabalho qualificado.»

Pergunta:

 Qual a origem da expressão beirã «dar ao facho», que significa «coscuvilhar» ou «bisbilhotar»?

Resposta:

Um facho era uma matéria inflamável que se acendia de noite para dar rebate de que se aproximava o inimigo ou para dar qualquer sinal, para servir de guia, etc. Facho tem como sinónimos archote, brandão, lanterna, luzeiro, tição aceso, chama, luz.

Deste significado material, construíram-se outros, e facho também passou a significar tudo o que esclarece ou serve de luz intelectual, de norte, de guia e ainda tudo o que serve de elemento para suscitar, alimentar ou desenvolver paixões (discussões, tomadas de posição). Nesta acepção surge, por exemplo, o termo «brandir o facho da discórdia». É que um facho, além de alumiar, também serve para pegar fogo a algo, para incendiar, materialmente ou não. É o que se pode ver nesta frase da obra No Bom Jesus do Monte, de Camilo Castelo Branco: «Se lá vais, atiras com um facho infernal ao seio daquela família.»

Da dupla acepção de facho como «chama, luz (visível na escuridão)» e como «algo que suscita ou alimenta paixões», surge o regionalismo de Trás-os-Montes facho com o significado de «mulher malcomportada». Trata-se de uma mulher que, como um facho, não passa despercebida, dá nas vistas e, também, uma mulher de quem se fala, que suscita discussões entre as pessoas, que dá azo a falatório, a coscuvilhices, a bisbilhotices.

No Algarve, facho também é usado com o significado de «má maneira, mau preparo, má apresentação no vestir» (por exemplo: «Não tens vergonha de vir para a rua nesse facho?»). Essa maneira de vestir dará nas vistas (como um facho) e provocará, naturalmente, falatório entre as pessoas.

Chegamos, assim, à expressão «dar ao facho», que significará «bisbilhotar, coscuvilhar para pôr alguém com a visibilidade de u...

Pergunta:

Ao ver o programa Um contra Todos de 22 de Janeiro do corrente ano, a pergunta de casa (passatempo), relacionada com o tema Personalidades, era quem é o irmão do também pintor de Rafael Bordalo Pinheiro. Nas possibilidades de resposta, a certa era «Colombano Bordalo Pinheiro» – sim, Colombano com o na segunda sílaba.

A questão é a seguinte: é com o ou com u (Columbano)? É que na Internet aparece das duas maneiras, e a curiosidade é que trabalho na Av. Columbano Bordalo Pinheiro em Lisboa e sempre escrevi com u. Em que ficamos? Acho que seria interessante para o vosso programa.

Obrigado pela atenção,

Resposta:

Columbano, nome próprio de Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929), escreve-se com u na antepenúltima sílaba. Assim o registam, por exemplo, três obras de referência: o Dicionário de Pintores e Escultores Portugueses, a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e o Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa.

Nesta última obra, de José Pedro Machado, explica-se que Columbano é um nome próprio derivado de columbus, palavra latina que significa «pombo», ou antes de columba, que significa «pomba», em alusão ao Espírito Santo, e que existiram dois santos com este nome, ambos falecidos no século VII.

Pergunta:

Tenho uma expressão curiosa que me tem afligido durante uns tempos e que é repetida vezes sem conta por todo o lado. Por exemplo, tenham em atenção as seguintes expressões:

«Não vem nenhum...»
«Não há nada...»
«Não fiz nada...»

Ora, estas expressões, tão vulgarizadas, querem dizer exactamente o oposto para o qual são usadas! Ou seja, são negações de negações:

«Não vem nenhum» quer dizer que vêm todos!
«Não há nada», que existe tudo!
«Não fiz nada», que fiz tudo!

As expressões correctas deveriam ser, por exemplo, «Não vem algum» ou «Não fiz algum» ou «Não fiz tudo».

O que têm para me dizer acerca disto?

Muito obrigado pela vossa atenção.

Resposta:

 As expressões que refere criticamente estão correctas. Efectivamente, uma das características sintácticas da língua portuguesa é a da dupla negação quando o constituinte negado ocorre em posição pós-verbal.

Exemplos:
(1) «Isso não tem nenhum interesse.»
(2) «Não tenho nenhum disco desse cançonetista.»
(3) «Ele não fez nada para merecer tal distinção.»
(4) «Ela não quer ver ninguém.»

Acresce que no português arcaico se empregavam as construções «nem… não», «ninguém… não», «nenhum… não».

A dupla negação também existe noutras línguas românicas como, por exemplo, o espanhol e o francês.

Pergunta:

Gostaria que referissem as situações em que a locução conjuncional «de modo que» está presente (locução conjuncional final ou/e consecutiva), bem como as diferenças entre «de modo que», «de tal modo que» e «de modo a (?) que». Obrigada.

Resposta:

«De modo que» é uma locução que significa «de forma que», «de sorte que», «de maneira que»; «assim», «pois», «nessa conformidade».

Exemplos:
(1) «Ele falou em voz alta, de modo que fosse ouvido por todos.»
(2) «O Francisco não veio, de modo que tive de pôr pernas a caminho para resolver a situação.»

A locução «de tal modo que» é utilizada apenas para exprimir a ideia de consequência. É formada pela conjunção consecutiva que precedida de «de tal modo».

Exemplos:

(3) «Ele falou de tal modo, que todos ficaram impressionados.»
(4) «De tal modo ela dança, que encanta toda a gente.»

Quanto à locução «de modo a que» — não aconselhada —, trata-se do cruzamento entre o galicismo "de modo a" e a locução portuguesa «de modo que». "De modo a" é uma adaptação do francês de manière à.