Maria Regina Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

No Brasil, quando se debate a liberação do uso de drogas, costuma-se dizer "descriminalização", "descriminalizar", ou seja, deixar a lei de prever um fato como crime. O Dicionário Houaiss reconhece esta forma como sinônimo de "descriminar" (cujo uso é raro). Qual a preferível, descriminar ou descriminalizar? Qual regra se aplica para a formação de palavras novas como nesse caso? Grato, uma vez mais.

Resposta:

Como o consulente verificou, existem as duas formas e ambas estão correctas. Elas têm uma ligeira diferença de significado, o que leva a um diferente emprego, como passo a explicar.

São formas derivadas de criminar e criminalizar. Criminar (e incriminar) significam «pronunciar como criminoso», «imputar crime a», «acusar». «Criminar provém do latim ‘criminare’ (“acusar”). Criminalizar é um termo de ocorrência posterior, que significa «declarar que determinado acto se considera crime».

Assim, descriminar vai, pois, significar «tirar a culpa a alguém», «desculpar», «ilibar do crime», «inocentar», enquanto descriminalizar significa «excluir a criminalidade de um acto ou de um facto», «considerar que não é crime um determinado acto ou facto».

No contexto que apresenta, será de utilizar a palavra descriminalizar. Parece estar em apreciação se se deve considerar juridicamente que um determinado acto ou facto deixe de ser denominado de crime, e não se deve ser retirada a imputação de um crime a uma pessoa incriminada.

Pergunta:

Há dias alguém insistia comigo que se deveria escrever "preparação anterior que dispunha para frequentar este curso" em vez de "preparação anterior de que dispunha para frequentar este curso"...

Resposta:

A construção correcta é «preparação anterior de que dispunha para frequentar este curso».

O verbo dispor tem, ou não, a regência da preposição de, consoante o seu significado.

Efectivamente, na acepção de “colocar em determinada ordem”, “acomodar”, “arrumar”, “colocar”, “marcar”, “organizar”, “estatuir”, este verbo não vem regido de preposição: dispor os artigos na prateleira, dispor as tropas para o combate, a lei dispõe que.

Já na acepção de “possuir”, “usufruir de”, “dar destino a”, o verbo exige a preposição de a preceder o complemento: dispor de muito dinheiro, dispor dos seus bens.

É precisamente nesta acepção que o verbo dispor está utilizado na frase apresentada: alguém dispunha de uma preparação anterior, assim, «a preparação anterior de que ele dispunha (…)».

Pergunta:

Gostaria de ser esclarecido sobre a melhor expressão: "duvido de que" versus "duvido que".

Creio que "duvidamos de", mas na língua falada a proposição "de" está a cair e isso transmite-se à escrita. Andei pelo Ciberdúvidas à procura e vi distintos professores usarem as duas expressões.

Resposta:

A construção correcta é duvidar que.

O verbo duvidar tem mais do que uma regência. É regido da preposição de sempre que se lhe segue um substantivo ou um pronome: duvidar das notícias, duvidar do ministro, duvidar de alguém, duvidar de si, duvidar de todos, etc. Não é regido de preposição, quando introduz uma oração integrante ou completiva: duvido que ele venha, duvido que alguém saiba.

A dúvida do nosso consulente é, no entanto, pertinente. Há autores, como, por exemplo, Rodrigo de Sá Nogueira, no seu Dicionário de Erros e Problemas de Linguagem, que defendem o emprego da preposição de em construções como «eu duvido de que isso tenha acontecido».

Discordo desta perspectiva. Efectivamente, quando seguido de substantivo ou pronome, o verbo significa «desconfiar de», «não ter confiança em», «suspeitar de», mas, quando seguido de oração, já significa «pensar/julgar não ser verdade que», «no fundo, não acreditar que», «ter por incerto que» algo aconteça, tenha acontecido ou venha a acontecer. Assim, deverá dizer-se «eu duvido que isso tenha acontecido» = «julgo não ser verdade que isso tenha acontecido» = «não acredito que isso tenha acontecido» = «tenho por incerto que isso tenha acontecido».

Pergunta:

De um modo provavelmente errado e sem qualquer fundamento, para além de uma vaga associação à célebre figura do Zé Povinho do Bordalo, sempre entendi que expressões do tipo «Aqui não se fia» ou «Aqui não há fiado» são formas demasiado vulgares e pouco... elegantes de dizer. Estarei completamente enganado? Em que contextos podem usar-se? Qual a sua origem?

Muito obrigado pela vossa opinião e ajuda.

Resposta:

Fiar tem origem no latim ‘fidare’, por ‘fidere’, que significava «confiar, acreditar em, contar com, fiar-se em».

Este significado inicial de confiar dá origem a um outro que é o de «afiançar, abonar, garantir, assegurar» e, finalmente, o de «vender a crédito», precisamente porque se tem confiança na pessoa.

Como a actividade comercial actual faz uso de uma terminologia técnica muito específica, e tem um âmbito muito amplo e pouco pessoal, não havendo aquele conhecimento de vendedor e comprador antigo, em que a palavra de honra tinha significado, e como, também, essa atitude de confiar (no comércio) muitas vezes criou situações desagradáveis pelo incumprimento daquele em quem se confiou, esse termo ganhou, efectivamente, essa conotação vulgar e pouco elegante que o consulente refere.

Pergunta:

Verifiquei, com surpresa, que o Ciberdúvidas desconhece que a expressão a par e passo não tem qualquer sentido, nem sequer existe, aliás. É uma corrupção da expressão latina "pari passo" que significa «com o mesmo passo» ou «com passo igual».

Resposta:

Com todo o respeito que nos merece o nosso caro consulente, a expressão a par e passo efectivamente existe e tem sentido. Esta expressão e outra semelhante (de par e passo) provêm, como diz, do latim 'pari passu' (com igual passo). Estas expressões foram e são utilizadas, quer no discurso oral quer no texto escrito, e aparecem registadas nomeadamente na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.

Significam «ao mesmo tempo», «simultaneamente», «juntamente».

N. E. (16/05/2016) – A expressão «a par e passo» é controversa, havendo doutrina normativa que a condena (ver Textos Relacionados).