Luís Filipe Cunha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Luís Filipe Cunha
Luís Filipe Cunha
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Doutorado em linguística; investigador do Centro de Linguística da Universidade do Porto.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Poderíeis confirmar se aquela tela de palha ou vime que envolve e protege garrafas e garrafões se chama mesmo "angarilha"? Se afirmativa a resposta, poderíeis dizer-me se há, além dessa, outra(s) palavra(s), em português, para designar o objeto supramencionado, mesmo que sejam regionalismos? Ser-vos-ia possível falar sobre a etimologia dessa palavra e se a mesma tem no idioma de origem o mesmo sentido que tem em português?

Gostaria ainda de saber qual é o nome da referida tela em latim.

Muito obrigado.

Resposta:

Nos dicionários consultados (Porto Editora e Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado), surge, de fa{#c|}to, a palavra angarilha com o significado de «cobertura de palha ou verga com que se resguardam objectos de louça ou de vidro» (Porto Editora) ou «capa de palha ou vime com que se envolvem vasos, garrafas, para evitar que se quebrem» (José Pedro Machado).

No dicionário de José Pedro Machado, surge, como sin{#ó|ô}nimo de angarilha, a palavra balça.

Quanto à etimologia, os dois dicionários mencionados referem que esta palavra provém do castelhano angarilla, que, segundo o Dicionário Porto Editora, designaria, originalmente, «cangalhas».

Infelizmente, não nos foi possível encontrar qualquer palavra em latim com o mesmo significado de angarilha.

Pergunta:

Gostaria de saber como se classificam as frases complexas cujas orações se repartem pela introdução do discurso directo e o discurso directo propriamente dito. Exemplo:

«Quando o José abriu a caixa disse:
— É para mim!»

Atentando na frase/oração introdutória, se a 1.ª oração é facilmente classificável (subordinada adverbial temporal), já a segunda, ao reduzir-se apenas ao verbo declarativo «disse», suscita algumas dúvidas, pois um dos constituintes fundamentais deste verbo — o complemento directo (CD) — é enformado pela frase simples já em discurso directo. Assim, poderá «disse» ser considerado por si só oração subordinante ou, pelo contrário, e como está em falta um dos elementos essenciais por ele pedido, não poderá de modo algum sê-lo? Caso não possa considerar-se como oração principal, como classificá-lo? E a oração subordinada adverbial continua a sê-lo?

Quanto à frase já em discurso directo («É para mim!»), devemos classificá-la como frase simples (porque o é por si só), ou, sabendo nós que se trata do CD do verbo declarativo antecedente, devemos analisá-la na sua forma de discurso indirecto e classificá-la como oração subordinada completiva?

O mesmo para «Penso — disse meu pai — que te darás melhor em letras»: «disse meu pai» — frase simples, ou, convertendo toda a frase para o discurso indire{#c!}to («O meu pai disse que pensava que me daria melhor em letras»), oração subordinante?

Já agora, aproveito para colocar a mesma questão em relação a frases complexas na interrogativa. Exemplo: «Será que expulsá-lo da aula foi bem pensado?»

Espero ter sido clara na exposição da dúvida.

Obrigada.

Resposta:

Em primeiro lugar, importa sublinhar que, em termos sintá{#c|}ticos, as frases em discurso dire{#c|}to diferem bastante das completivas e, como procuraremos demonstrar, não se constituem como complemento dire{#c|}to do verbo introdutor.

1. Ao contrário das completivas, não é possível encontrar nas frases em discurso dire{#c|}to um complementador (ou conjunção, na terminologia tradicional) que ligue as duas orações.

2. Tipicamente é obrigatória uma pausa, na fala, ou pontuação que a indique, na escrita, entre o verbo introdutor e a frase no discurso dire{#c|}to. Assim, uma estrutura como «* O João disse eu estou contente» é an{#ó|ô}mala, sendo possível apenas uma construção como «O João disse: – Eu estou contente.» Pelo contrário, as completivas ocorrem sem qualquer pausa entre o verbo introdutor e a oração subordinada: é bem formada uma frase como «O João disse que está contente», sendo an{#ó|ô}mala a sua equivalente com pausa, i. e. «* O João disse: que está contente». Ora, como sabemos, nunca são possíveis pausas entre um verbo e o seu complemento dire{#c|}to, o que indicia que as frases em discurso dire{#c|}to não estabelecem este tipo de relação sintá{#c|}tica com o verbo introdutor, em contraste com o que sucede com as subordinadas completivas. 

3. As frases com discurso dire{#c|}to permitem a introdução de um sintagma nominal com a função de complemento dire{#c|}to do verbo sem ocasionarem qualquer tipo de agramaticalidade. Assim, é perfeitamente possível uma estrutura como «O João disse estas palavras/uma coisa extraordinária: – Estou contente.» Já numa construção completiva, a introdução de um complemento dire{#c|}to de tipo nominal dá inequivocamente origem a estruturas agramaticais, como podemos comprovar em «* O João disse estas palavras/uma coisa extraordinária que está contente». Isto significa que a oração completiva e o SN complemento dire{#c|}to do verbo competem pela mesma posição sintá{#c|}tica, não sendo possível a ...

Pergunta:

Num destes fóruns que hoje há pela Internet surgiu esta discussão após eu ter advertido para o erro que a seguir passo transcrever:

«Mas merece claramente ser ouvido. E com atenção. Ouvido outra vez para percebermos todos os pormenores. Eu confesso que ainda sinto que estes dois álbuns têm mais para eu descobrir.

Merece claramente o tempo que se perca (ou ganhe!!!) com ele e merece estas linhas todas que estou a escrever!! E volta a reforçar as minhas preferências: Manuel Cruz é um verdadeiro artista e um verdadeiro homem da música!»

A advertência era para isto: «Merece claramente o tempo que se perca (ou ganhe!!!) com ele e merece estas…»

Disse eu que o modo a usar no verbo perder deveria ser o indicativo, porquanto o claramente assim o exigia.

Como certezas não tenho, embora me pareça estar correcto no meu raciocino, peço-vos a vossa ajuda.

Grato pela vossa atenção.

Resposta:

Em primeiro lugar, é importante observar que, tipicamente, advérbios do tipo de claramente, por si só, não são determinantes na sele{#c|}ção do modo indicativo ou conjuntivo de uma dada oração. A comprová-lo, observem-se as seguintes frases:

«O escritor recusou claramente que as suas obras fossem publicadas após a sua morte.»

«O presidente da empresa solicitou claramente que todos os seus colaboradores comparecessem à reunião.»

Na realidade, e apesar da presença do advérbio claramente, a substituição do modo conjuntivo pelo indicativo, em frases como estas, dá lugar a resultados inequivocamente agramaticais, como os exemplos seguintes nos confirmam:

* «O escritor recusou claramente que as suas obras eram/são/vão ser publicadas após a sua morte.»

* «O presidente da empresa solicitou claramente que todos os seus colaboradores compareciam/comparecem à reunião.»

Após esta importante advertência inicial, passemos à análise concreta da frase que suscitou as dúvidas indicadas na pergunta. Aqui, o modo conjuntivo surge numa oração subordinada relativa, cujo antecedente é a palavra tempo. Ora, a alternância entre o modo indicativo e o modo conjuntivo em orações relativas é um fenómeno bastante frequente no português, tendo interessantes consequências a nível semântico. O contraste que a seguir apresento ilustra o que acabo de referir:

«A Cristina quer comprar uma casa que tem três quartos.»

«A Cristina quer comprar uma casa que tenha três quartos.»

Na primeira frase, com o uso do indicativo, postula...

Pergunta:

Venho por este meio indicar que existe, a meu ver, uma imperfeição na definição de um objecto na resposta 23481, nomeadamente no ponto 2, em que se diz que um cadeado e um aloquete são sinónimos e representam ambos os seguintes significados: «cadeia de elos» e «elo com fechadura».
Concordo, sim (Norte/Sul): cadeado e corrente, sinónimos quando nos referimos à cadeia de elos de ferro; e aloquete e cadeado, sinónimos quando nos referimos ao elo dotado de uma fechadura. Aloquete não é confundido com uma corrente. Trata-se de objectos distintos independentemente do local ou região, por isso, não podem ter essa designação.

Resposta:

Em primeiro lugar, é importante sublinhar que esta pergunta parte de uma premissa errada, a de que se fazem definições de objectos [cf. «(...) uma imperfeição na definição de um objecto (...)»]. Na realidade, as definições que são dadas são definições de palavras enquanto entidades ling{#u|ü}ísticas. Esta distinção é particularmente importante na medida em que uma mesma entidade pode ser designada por mais do que um termo. Assim, por exemplo, um mesmo obje{#c|}to do mundo real pode ser designado por palavras diferentes como carro ou automóvel. Por outro lado, certas palavras podem designar um conjunto muito vasto e diferenciado de obje{#c|}tos no mundo real. Por exemplo, banco pode referir entidades muito diversificadas quanto à configuração, ao material de que são feitas, ao tamanho etc. Compare-se, por exemplo, um banco de cozinha com um banco de autocarro. Nesse sentido, o significado das palavras não pode ser confundido com os obje{#c|}tos físicos do mundo por ele designados; a significação é um "recorte" da realidade de natureza puramente ling{#u|ü}ística.

Relativamente ao significado de aloquete, dado tratar-se de uma variante regional, parece, pela consulta que fiz a alguns falantes da cidade do Porto, estar sujeito a alguma variação. Assim, se, para alguns falantes, aloquete designa apenas a «fechadura» ou «ferrolho», para outros parece significar todo o conjunto formado pela fechadura e pela corrente que lhe está associada (o que não significa necessariamente que corrente e aloquete sejam sin{#ó|ô}nimos). Naturalmente, seria importante fazer uma investigação mais aprofundada a este tipo de variações que, no entanto, está fora do âmbito do Ciberdúvidas. De qualquer forma, os dicionários consultados (Porto Editora; Lexillelo; Dicionário da Academia das Ciências, ed. Verbo) são unânimes em considerar aloquete como sin...

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem quanto ao verdadeiro significado da palavra muro. No meu entender, esta palavra envolve alvenaria, mas, já li na Internet e em certos dicionários que um dos significados possíveis seria «taipas» — dicionário Priberam (inclusive termina com etc.).

Resposta:

De acordo com os dicionários consultados (Dicionário da Academia das Ciências, ed. Verbo; Dicionário Porto Editora), muro designa «obra de alvenaria ou construída com diversos tipos de material, de espessura e altura variáveis, que se eleva vertical ou obliquamente sobre uma certa extensão e que serve para vedar ou cercar um espaço, separar terrenos contíguos ou suster terras». O Dicionário Porto Editora chega mesmo a dar como seus sinónimos parede, tapamento e resguardo. No Dicionário da Academia das Ciências é explicitamente referido o «muro de taipa», como um dos exemplos de tipos de muro. Inclusivamente, um dos significados de taipa referidos nesse dicionário é o de «muro de cerca feito de barro amassado e calcado, formando um bloco resistente». Um outro significado atribuído a esta palavra é o de «muralha». Finalmente, muro pode ainda significar, de forma mais lata, «defesa», «protecção» ou «auxílio».

É importante sublinhar, pois, que muro, sendo uma palavra de utilização bastante frequente, adquiriu, como acabámos de mostrar através dos diferentes significados que lhe são atribuídos nos dicionários consultados, uma significação muito abrangente.