Luís Filipe Cunha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Luís Filipe Cunha
Luís Filipe Cunha
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Doutorado em linguística; investigador do Centro de Linguística da Universidade do Porto.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

As expressões «ordem de prioridade» e «ordem de prioridades» podem ser utilizadas indiscriminadamente, ou há situações em que se deve usar uma expressão e não a outra?

Resposta:

Embora, na ausência de um contexto de uso concreto, seja um tanto difícil estabelecer a diferenciação entre as duas estruturas em causa, elas divergem, de fa{#c|}to, num ponto fundamental: o uso do singular (prioridade), que remete para uma única entidade, ou o uso do plural (prioridades), que remete para um conjunto de entidades.

Partindo do princípio de que o termo ordem, nas expressões em causa, designa «sucessão» ou «seriação», obtemos dois resultados diferentes conforme seja usado o singular ou o plural. Assim, em «ordem de prioridade», estamos a assumir a existência de uma única prioridade, em relação à qual os diferentes elementos vão ser ordenados. Tomando um exemplo concreto, o do atendimento ao público numa repartição, no caso de haver «ordem de prioridade», são as pessoas que vão ser organizadas de acordo com um único critério — a prioridade — que poderá ser a hora de chegada.

Já no caso de «ordem de prioridades», devido ao uso do plural, a interpretação preferencial parece ser aquela em que o que está a ser «seriado» ou organizado são as diversas prioridades em si mesmas e não os elementos que lhes correspondem. Ou seja, tomando o exemplo acima referido, colocam-se por ordem vários critérios — as prioridades —: ordem de chegada, idade, condição física, urgência da situação etc.

Pergunta:

Existe diferença entre:

— «Preservar do mundo, da apostasia e das falsas doutrinas»

e

— «Preservar no mundo, na apostasia e nas falsas doutrinas»?

«Preservar do» e «preservar no» são iguais, ou existem diferenças?

Obrigada pela resposta.

Resposta:

Mesmo tendo em conta que seria necessário ter acesso a um contexto um pouco mais vasto para a compreensão cabal das frases apresentadas, não há dúvida de que, pela escolha das preposições, elas encerram significados necessariamente diferentes.

Assim, a preposição em é freq{#u|ü}entemente utilizada para designar, de forma mais ou menos neutra, um certo tipo de localização (ex.: «O João está na escola»), que se pode estender a um determinado contexto de enquadramento mais vasto para além da mera localização física (ex: «a crise que se verifica na Europa»). Assim, «preservar no mundo, na apostasia e nas falsas doutrinas» poderá significar a preservação de alguém ou de alguma coisa (a frase é elíptica a esse respeito) no contexto ou no interior de um determinado mundo ou num conjunto de ideias. Neste caso, preservar será interpretado como «manter».

Já a preposição de parece remeter, neste caso, para uma leitura diferente, associada a certas propriedades de subcategorização do verbo preservar. Na realidade, faz parte do significado lexical do verbo em questão, quando este designa «resguardar» ou «defender», um argumento que configura o elemento relativamente ao qual se quer proteger alguém ou alguma coisa. Neste caso, a frase «preservar do mundo, das apostasias e das falsas doutrinas» parece significar que se quer defender alguém ou alguma coisa (não especificada na frase) contra o mundo ou contra as falsas doutrinas.

Em suma, e no caso do verbo preservar, a sele{#c|}ção da preposição vai ser determinante para o significado que atribuímos à própria forma verbal em si. Comparem-se, a este respeito, as seguintes construções: «preservar no frio» e «preservar do frio» no primeiro caso, preservar significa «conservar», «manter»; no segundo, «defender» ou «resguardar».

Pergunta:

No seguimento desta outra pergunta, surgiu-me a seguinte dúvida: se, em vez de a segunda frase possuir um sujeito subentendido, tiver um pronome pessoal, a concordância deverá ser mantida ou não. Isto é, qual dos dois exemplos seguintes estaria correcto?

«O grupo fez algo. Eles seguiram...»

«O grupo fez algo. Ele seguiu...»

Obrigado.

Resposta:

Visto que os pronomes pessoais explicitamente realizados nos fornecem informação de género e número, as suas possibilidades de correferência no interior de uma frase são bastante mais flexíveis e diversificadas do que aquelas que normalmente estão disponíveis para os pronomes não explicitados.

Assim, os pronomes podem ligar-se não só aos sintagmas nominais com a função sintáctica de sujeito da frase anterior (Ex.: «O tio da Maria vive numa casa enorme. Ele adora esse lugar»; «A mãe do João comprou um carro novo. Ela está impaciente por experimentá-lo», mas também a outros sintagmas nominais disponíveis na frase e que partilhem as propriedades de género e número com os pronomes utilizados. Mesmo sintagmas nominais encaixados em sintagmas preposicionais podem, neste contexto, servir como antecedentes para os pronomes, como em «O tio da Maria vive numa casa enorme. Ela adora esse lugar» ou em «A mãe do João comprou um carro novo. Ele está impaciente por experimentá-lo». Devido à obrigatoriedade de concordância em género e número entre o pronome e o seu antecedente, nestas duas últimas frases são os sintagmas nominais encaixados nos sintagmas preposicionais (i. e., «a Maria» e «o João», respectivamente) que se ligam aos pronomes pessoais que iniciam a segunda frase.

Atentemos, agora, nos exemplos propostos na questão. Se compararmos uma frase como «O grupo fez algo. Eles seguiram...» com «O grupo fez algo. Ele seguiu...», observaremos que apenas a última está correctamente construída na medida em que o único antecedente disponível para o pronome é um sintagma nominal masculino singular, i. e., «o grupo», e, como tal, o pronome terá de concordar com ele em género e número. No caso da continuação com «eles», não existe um antecedente na frase que ligue o pronome, tornando-se esta agramatical.

Note-se, no entanto, que, se houver um ...

Pergunta:

Gostaria de saber qual a regra que sustenta estas duas expressões: «eu sei o que é isso» e «eu sei o que isso é». Embora saiba que ambas estão correctas, há quem insista comigo que a segunda está errada. No entanto, não sei como justificar através da gramática.

Obrigada.

Resposta:

Frases como as apresentadas acima assemelham-se, em grande medida, às chamadas interrogativas indire{#c|}tas, no sentido em que comportam uma expressão — neste caso «o que» — que funciona como uma espécie de variável. Para compreendermos a sua estrutura em termos sintá{#c|}ticos, vamos recorrer, primeiramente, a um exemplo mais simples e claro, para depois estendermos a análise às frases em questão.

Numa configuração como «A Maria sabe quem eu sou», quem funciona como um pronome-variável, que pode corresponder a «a pessoa X». Assim, estamos a dizer que «A Maria sabe que eu sou uma pessoa X». Neste tipo de construções, a variável é movida para uma posição inicial da frase encaixada (tomando «A Maria sabe» como a frase principal). Observamos, por outro lado, que, nesta construção, eu funciona como o sujeito da frase encaixada, na medida em que concorda em pessoa e número (i. e., controla a concordância) com a forma do verbo ser: «eu sou». Por outro lado, estando em causa o verbo ser, que é um dos designados verbos copulativos, a função de predicador é desempenhada pelo chamado predicativo do sujeito, que, neste caso, será realizado pela variável quem. Assim, a estrutura da frase encaixada seria, grosso modo, a seguinte: «eu» (sujeito) «sou» (forma do verbo copulativo) «quem» (predicativo do sujeito). Dada a sua condição de variável, o predicativo do sujeito é obrigatoriamente movido para uma posição inicial da frase encaixada, dando origem à configuração «quem eu sou» presente em «A Maria sabe quem eu sou». Finalmente, e como discutiremos mais adiante, se se aplicar o movimento sintá{#c|}tico designado como inversão do sujeito, poderemos ter uma estrutura como «A Maria sabe quem sou eu».

Retomemos, agora, a frase que surge na pergunta, tentando aplicar-lhe a análise que acabámos de propor. Assim, em «Eu sei o que isso é» teremos como oração principal «eu sei» cujo complemento é uma oração subordinada constituída por um...

Pergunta:

Como é que se distinguem a nível de pronúncia e fonética as palavras intersectar e interceptar?

Resposta:

Segundo os dicionários consultados (Porto Editora e dicionário da Academia das Ciências, ed. Verbo), em português europeu, existe, de fa{#c|}to, diferença na realização fonética destas duas palavras: no caso de interceptar, temos um e aberto, e a consoante p não é pronunciada; no caso de intersectar, mantém-se o e aberto mas a consoante c é pronunciada.

Apesar das diferenças ilustradas nos dicionários, é possível constatar que cada vez mais falantes que pronunciam estas duas palavras da mesma forma, omitindo, em ambos os casos, as consoantes referidas.