Desconhecido - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Desconhecido.

 
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Pergunta:

Estou lendo O crime do padre Amaro e vi que o Eça às vezes usa expressões como «beba-lhe» e «coma-lhe», assim mesmo, no imperativo.

Cito:

«E quando as beatas, que lhe eram fiéis, lhe iam falar de escrúpulos de visões, José Miguéis escandalizava-as, rosnando: — Ora histórias, santinha! Peça juízo a Deus! Mais miolo na bola! As exagerações dos jejuns sobretudo irritavam-no: — Coma-lhe e beba-lhe, costumava gritar, coma-lhe e beba-lhe, criatura!»

Como explicar esse «lhe»?

Resposta:

O pronome em questão pode ser interpretado como uma manifestação de dativo ético, usado em construções informais ou familiares, sendo, no entanto, possível associá-lo a outras interpretações.

O dativo ético é um pronome na forma dativa (me, te, lhe, …) que assinala uma entidade que, não sendo um participante na situação descrita (ou seja, não é um argumento do verbo) de alguma forma é afetado por ela1. Veja-se, a título de exemplo, a frase (1):

(1) «Os vendedores batem-me sempre à porta.»

Neste caso, o pronome me não é um argumento do verbo bater, mas representa uma primeira pessoa (o locutor) que é afetada pela ação de bater.

No caso da frase de Eça de Queirós, aqui transcrita em (2), poderemos interpretar o pronome lhe como referente à pessoa com quem o locutor fala, que será afetada pelo ato de comer ou de beber:

(2) «— Coma-lhe e beba-lhe, costumava gritar, coma-lhe e beba-lhe, criatura!» (Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro)

É possível identificar construções análogas noutros textos. Transcrevemos aqui uma dessas frases que permitirá uma outra interpretação do fenómeno em análise:

(3) «Quem for a Boticas, coma um peixinho desses, e beba-lhe vinho dos mortos em cima. (Miguel Torga, Portugal.)

Neste caso, o pronome lhe poderá ser interpretado como uma forma de dativo de posse2, ou seja, um pronome com função de complemento indireto que represe...

Pergunta:

A propósito da ilustração ao lado, e chamando-se esta associação humanitária “Um Lugar para o Joãozinho”, a palavra “pró” que vemos na imagem deveria estar escrita com acento grave (prò), uma vez que a contração de “para + o” dá “prò”. 

O Dicionário Priberam diz-nos que esta grafia foi «alterada pelo Acordo Ortográfico de 1990: pro”, o mesmo acontecendo com a contração de “para + a”: pra.

De facto, pelo Acordo Ortográfico de 1990 (Base XII), o acento grave só está previsto para a contração da preposição “a” com as formas femininas do artigo ou pronome demonstrativo (à, às) e com o demonstrativo “aquele” e suas flexões (àquele, àquela…).

A minha questão é a seguinte: perdendo “prò” e “prà” o acento segundo o AO90, e sabendo que todas as palavras agudas terminadas em “a” e “o” abertos são acentuadas graficamente, não deveriam estas palavras ter, então, acento agudo (pró, prá)?

 Muito obrigado.

Resposta:

 A contração da preposição para com os artigos definidos ou pronomes demonstrativos a, o, as, os, segundo a Base XXIV do Acordo Ortográfico de 1945 correspondia às formas prà, prò, pràs, pròs. Como já foi esclarecido na resposta As contrações e variantes de para: pra, prá, pro, etc, a Base XII do Acordo Ortográfico de 1990 estipula as formas pra, pro, pras, pros (sem acento).

Cf. Pra, prà e apóstrofo

Pergunta:

A palavra «suprarreferido», segundo o Acordo Ortográfico, escreve-se com dois "r" a seguir à letra "a" ou só, unicamente, com um "r" – «suprareferido»?

Muito obrigado pela ajuda prestada.

Resposta:

Conforme a a) da Base XVI (Do  hífen nas formações por prefixação, recomposição e sufixação) do Acordo Ortográfico de 1990, não se emprega o hífen nas «formações em que o prefixo ou falso prefixo termina em vogal e o segundo elemento começa por r ou s, devendo estas consoantes duplicar-se, prática aliás já generalizada em palavras deste tipo pertencentes aos domínios científico e técnico.» Com estes exemplos dados: «antirreligioso, antissemita, contrarregra, contrassenha, cosseno, extrarregular, infrassom, minissaia, tal como biorritmo, biossatélite, eletrossiderurgia, microssistema, microrradiografia.» 

Esta regra contempla, pois, o caso da pergunta. Deve escrever-se suprarreferido, com o r dobrado, de referido

Pergunta:

«Luísa tinha muito talento para que eu não me lembrasse dela.»

«Luísa tinha muito talento para que eu me lembrasse dela.»

Qual é o entendimento que se pode dar às frases acima? Querem dizer a mesma coisa?

Obrigado.

Resposta:

Nas frases que apresenta, a leitura mais saliente é aquela em que a oração subordinada «para que eu (não) me lembrasse dela» veicula uma consequência da situação descrita na oração principal, comportando-se, portanto, como uma oração consecutiva. As frases não querem dizer a mesma coisa (querem dizer o contrário uma da outra).

Para facilitar a interpretação das duas frases, imaginemos um contexto em que as possamos utilizar: eu estou a organizar um espetáculo de bailado no meu bairro e tenho uma amiga, chamada Luísa, que é uma excelente bailarina.

1 – «Luísa tinha muito talento para que eu não me lembrasse dela.»

Neste caso, a frase significa que a Luísa tinha tanto talento, que era impossível não me lembrar dela para entrar no meu espetáculo.

2– «Luísa tinha muito talento para que eu me lembrasse dela.»

Em contrapartida, eu posso proferir a frase 2 se estiver a considerar que o talento da Luísa é de um nível superior ao do espetáculo que estou a organizar, amador (ou seja, o seu talento é tanto, que nem me lembrei dela).

Sem um contexto adequado, existe alguma dificuldade na interpretação da segunda frase, possivelmente devido à expressão «muito talento», que tem uma conotação positiva, tornando inesperada a consequência de o falante não pensar numa pessoa com tais características. Este aspeto pode ter levado o nosso consulente a atribuir-lhe uma interpretação igual à da primeira frase.

(Existe ainda uma interpretação em que a oração subordinada é complemento do nome talento, introduzida pela preposição que este rege: «talento para a música», «talento para vender automóveis». Neste caso, a primeira frase significa que a Luísa tem muito talento para fazer com que eu não me lembre ...

Pergunta:

Sempre me perguntei se é possível tirar a ambiguidade de frases negativas sucedidas por conjunções causais. Por exemplo, em «Ele não foi à aula, porque estava com preguiça», o fato de o sujeito estar com preguiça pode ser de fato a causa de sua ausência; por outro ângulo, o interlocutor pode, na verdade, estar clarificando que esta não é a verdadeira causa, mas que há outra razão. Adicionando mais detalhes para que este segundo caso fique claro: «Ele não foi à aula, porque estava com preguiça, mas porque estava doente.»

Pergunto-lhes se, neste segundo sentido, a segunda oração não acaba se tornando subordinada explicativa, já que estar com preguiça não é a causa da ausência, mas uma explicação.

Resposta:

Antes de mais, e para responder já à primeira parte da sua pergunta, importa saber que essa ambiguidade não existe com todas as conjunções causais. Uma forma de a evitar, portanto, é escolher outra conjunção.

Na frase que nos apresenta, a segunda interpretação é forçada pelo conteúdo das duas orações e pelo nosso conhecimento do mundo. Na verdade, a ambiguidade que existe é ligeiramente diferente, como podemos ver se alterarmos o exemplo de forma a que não haja a associação imediata entre «estar doente» e «não ir às aulas»:

1 – «Ele não foi à aula porque queria ver a namorada.»

As duas leituras possíveis têm que ver com a oração em que a negação é interpretada – a oração principal, ou a oração subordinada (a causa da situação descrita pela principal):

1’ – «Ele não foi, de facto, à aula, e a razão de não ter ido foi querer ver a namorada.»

1’’ – «Ele foi à aula, não porque queria ver a namorada, mas porque queria tirar dúvidas para o teste (por exemplo; neste caso, infere-se que a namorada é colega do sujeito).»

Como referido, algumas conjunções permitem o acesso da negação à oração subordinada, outras não. Assim, vejamos:

2 – «Ele não foi à aula, uma vez que queria ver a namorada.»

Enquanto a frase em 1 pode ter a interpretação que aponta, na frase 2, só a leitura em que a negação incide na oração principal é possível:

2’ – «Ele não foi, de facto, à aula, e a razão de não ter ido foi querer ver a namorada.»

2’’ – *«Ele foi à aula, não uma vez que que queria ver a namorada, mas uma vez que queria tirar dúvidas para o teste.»

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