Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
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Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Em recente concurso público para professores no Brasil, uma das questões pedia ao candidato que identificasse entre as alternativas a frase em que se usava incorretamente o sinal de crase. De acordo com a banca examinadora, o erro, destacado, estaria em «Socorristas enfrentam condições meteorológicas adversas enquanto trabalham para liberar estradas e FORNECER AJUDA ÀS CERCA DE 3500 PESSOAS ainda presas em comunidade isoladas».

Em minha argumentação, tentei demonstrar que na frase em questão não haveria erro por tratar-se de um verbo bitransitivo (fornecer) regendo um objeto direto ("ajuda") e um indireto («as cerca de 3.500 pessoas»), sendo que este último, por exigir preposição, admitiria crase em «fornecer ajuda a» + «as cerca de», já que o "as" tratar-se-ia, em princípio, de um artigo definido feminino plural.

Tentando antecipar a contra-argumentação da banca, expliquei ainda que, caso a expressão «a cerca de» fosse iniciada por preposição, o sentido não seria de quantidade aproximada, mas de distância aproximada (p. ex., «a cerca de dez quilômetros») e que, fosse esse o caso, naturalmente não se admitiria crase. Contudo, para minha surpresa, a resposta ao meu recurso foi, literalmente:

«Decisão: Indeferido Argumento: Na frase da alternativa b, a expressão "às cerca de" está errada. A expressão é formada de preposição 'a' e não de crase; além disso, 'às' está no plural quando o termo posterior (cerca) está no singular.»

Apenas isso, sem mais.

Não acho que minha interpretação esteja incorreta. Ao ler passagens como «expressão formada de preposição e não de crase» e ao notar que consideraram um advérbio invariável ("cerca") como «termo no singular», fico com a impressão de que as sutilezas da questão escolhida talvez estejam além da simples aplicação de esquemas reducionistas como os que se vê em https://mundoeducacao.uol.com.br/gramatica/acerca-cerca-ha-cerca-de.htm, fonte que acredito ter inspirado o pr...

Resposta:

A crase é incontestavelmente correta: «fornecer ajuda a» + «as cerca de 3500 pessoas» = «fornecer ajuda às cerca de 3500 pessoas». O mesmo se dá no masculino: «fornecer ajuda a» + «os cerca de 3500 cidadãos» = «fornecer ajuda aos cerca de 3500 cidadãos». 

Note que o emprego do artigo definido (condicionado às regras de concordância nominal) é correto como forma de determinar o núcleo nominal da expressão formada por «cerca de» + «número (ou numeral)» + «substantivo».

Em breve consulta ao Corpus do Português, usando-se o código de busca «a os cerca de» e «a as cerca de», comprova-se irrefutavelmente a existência de milhares de construções semelhantes à da questão em tela – seja na variedade brasileira, seja na variedade europeia da Língua Portuguesa.

 Eis alguns exemplos:

(1) «Ali, contaram-lhe sobre o empenho das equipas, sobre os resultados alcançados, sobre os cuidados que prestam aos cerca de 15 mil utentes.» (Público)

(2) «Maduro criticou a oposição e os EUA por terem enganado a si mesmos e aos cerca de 40 militares que seguiram o levante de Guaidó.» (Veja)

(3) «Na manhã desta segunda-feira, o Papa Francisco pediu às cerca de 40 mil pessoas que se reuniram na praça...» (Expresso)

(4) «A iniciativa é voltada às cerca de 30 crianças que participam do Apadrinhamento Afetivo da fundação......

Pergunta:

Por favor, a frase:

«O técnico brasileiro chamou o novo talento para a seleção.»

O verbo chamar nesta frase é verbo transitivo direto e indireto?

O termo «para seleção» é objeto indireto? Ou qual a função sintática do referido termo?

Obrigado.

Resposta:

Sim, é um objeto indireto*.

Isso se confirma, por exemplo, no Dicionário prático de regência verbal, de Celso Pedro Luft, sob o verbete chamar

Segundo o autor, quando esse verbo tem o sentido de convocar, passa a exigir dois complementos: um direto e outro indireto.

Eis os exemplos que apresenta Luft:

(1) «O presidente chama o conselho (para uma reunião).»

(2) «... nunca nenhum juiz chamou-o para jurado.» (José Lins do Rego: Cunha)

Portanto, na frase «O técnico brasileiro chamou o novo talento para a seleção», o termo sintático «o novo talento» funciona como objeto direto e «para a seleção», como objeto indireto.
 
Sempre às ordens!
 

* Por ser brasileiro o consulente, a terminologia empregada está consoante a nomenclatura tradicional vigente empregada no ensino de gramática no Brasil.

Pergunta:

No livro 1000 erros de português da atualidade, o autor, o famoso gramático Luiz Sacconi, no item 854, intitulado "não faça isso, não", escreveu:

«Usa-se sempre vírgula antes do não, como nessa frase [não faça isso, não]. Outro exemplo: Eu nunca diria uma coisa dessas, não. *** Não vou lá, não.»

Gostaria de saber se a repetição do não ao fim da frase é realmente aceita pela gramática normativa; se sim, se ela precisa ser precedida imediatamente por vírgula, como diz o autor; se sim, por qual razão, em que obras esse uso aparece nos nossos melhores escritos e quais gramáticos, além do citado, abonam esse uso.

Além disso, a aceitação desse uso não estaria em conflito com o que ensinou o gramático Celso Cunha (2014, p. 442), no livro Gramática Essencial, ao escrever: «os [= os advérbios] de negação antecedem sempre o verbo: Não aparece vivalma. (V. DE CARVALHO) Não dormi, tampouco estive acordado. (DA COSTA E SILVA)»?

Obrigado.

Resposta:

De início, cumpre observar que a lição dada pelo gramático Celso Cunha não tem ligação nem semelhança com a estrutura de dupla negação, completamente correta e existente na norma culta escrita lusófona (há séculos!) e documentada por gramáticos normativos tradicionais.

Sobre as suas questões, acompanhe:

(1) A repetição do "não" ao fim da frase é realmente aceita pela gramática normativa?

Sim, é. Já se encontra isso em João Ribeiro, na sua Grammatica Portugueza (1889: 257). Em Julio Ribeiro, na sua Grammatica Portugueza (1911: 301). Em Alfredo Gomes, na sua Grammatica Portugueza (1913: 343). Em Maximino Maciel, na sua Grammatica Descriptiva (1914: 363). Em Domingos P. Cegalla, no seu Dicionário de dificuldades da língua portuguesa (2012: 268). Em Celso Cunha e Lindley Cintra, na sua Nova gramática do português contemporâneo (2017: 169). Certamente há outros gramáticos não elencados aqui a ensinar o mesmo.

(2) O "não" repetido precisa ser precedido imediatamente por vírgula; se sim, por qual razão?

Sim, é a prática escrita, o uso que determina a norma. A razão é a ênfase, o reforço, a intensidade atribuída ao sentido negativo que se deseja imprimir à frase.

(3) Esse uso aparece nos nossos melhores escritores?

Sim, tanto nos portugueses quanto nos brasileiros: Miguel Torga, Júlio Dinis, Almeida Garrett, Antonio Callado, José de Alencar, Coelho Neto, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Cecília Me...

Pergunta:

Em «as meninas chegaram em silêncio», «em silêncio» é adjunto adverbial ou predicativo do sujeito?

Obrigado

Resposta:

O termo sintático «em silêncio» pode ser analisado de duas maneiras diferentes*: (1) adjunto adverbial de modo ou (2) predicativo do sujeito.

(1) As meninas chegaram em silêncio = As meninas chegaram silenciosamente (de modo silencioso).

(2) As meninas chegaram em silêncio = As meninas chegaram silenciosas = As meninas, quando chegaram, estavam em silêncio/silenciosas.

Em (1), note que a interpretação se baseia na relação sintática entre o termo «em silêncio» e o verbo. Observe também que, nessa leitura, há uma coerente substituição entre «em silêncio» e o advérbio de modo «silenciosamente». Esses dois argumentos sustentam a classificação «adjunto adverbial de modo».

Em (2), note que a interpretação se baseia na relação sintática entre o termo «em silêncio» e o sujeito «as meninas» – afinal, «(estar) em silêncio» é uma característica, um estado do sujeito. Observe também que há uma coerente comutação entre «em silêncio» e um adjetivo: «silenciosas». Esses dois argumentos sustentam a classificação «predicativo do sujeito».

Portanto, há dupla possibilidade de análise sintática, a depender da leitura que se faça.

Sempre às ordens!

* Por ser brasileiro o consulente, foram usados recursos próprios da gramática tradicional brasileira, cujo aporte teórico ainda é majoritário no ensino de gramática praticado no Brasil.

Pergunta:

Tenho certeza de que se flexione o gênero do particípio do verbo fazer na construção «ter sido feita a pergunta».

Entretanto, tenho a impressão de que o mesmo raciocínio não se aplique a «ter-se feito a pergunta». Em meu inseguro pensamento, nesse último caso o particípio do verbo fazer fica no masculino, soando-me inadequado «ter-se feita a pergunta».

Pediria a gentileza de informar o que seria o correto, «ter-se feito a pergunta» ou «ter-se feita a pergunta» e, caso «ter-se feito a pergunta» seja uma construção aceita no português (imagino que sim, já a vi muitas vezes), gostaria também de perguntar o motivo de não se flexionar o gênero do particípio nesses casos de haver-se + particípio ou ter-se + particípio, que me parecem relacionados com a voz passiva sintética.

Obrigado.

Resposta:

A forma correta (gramatical) é «ter-se (ou haver-se) feito uma pergunta», porque o particípio não varia em construções de voz passiva sintética (1). Já na voz passiva analítica (2), a flexão é normal, um fato gramatical inconteste.

Acompanhe:

(1a) Tinha-se realizada uma festa no parque da cidade. (frase agramatical)
(1b) Tinha-se realizado uma festa no parque da cidade. (frase gramatical)

(2) Uma festa tinha sido realizada no parque da cidade. (frase gramatical)

A razão de a frase (1a) ser agramatical se deve ao fato de «tinha realizado» ser uma construção de voz ativa, cujo verbo principal, por regra consuetudinária, não sofre flexão. Assim, só a frase (1b) é gramatical.

Note que a presença do se apassivador na fórmula de voz ativa («tinha realizado» > «tinha-se realizado») não altera em absoluto a natureza morfossintática da locução verbal, mas sim atribui um valor semântico passivo a ela e, por conseguinte, ao seu sujeito paciente («uma festa»).

Por esses motivos, o gênero do particípio não varia em voz passiva sintética.

Sempre às ordens!

 

Nota: Por ser brasileiro o consulente, foi usada a nomenclatura da gramática tradicional brasileira, cujo aporte teórico ainda é majoritário no ensino de gramática praticado no Brasil.