Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Deve dizer-se «oficie ao serviço de finanças», ou «oficie o serviço de finanças»? Obrigado.

Resposta:

A forma correcta é «oficie ao serviço de finanças».

Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001), da Academia das Ciências de Lisboa, um dos sentidos do verbo oficiar é «dirigir ou mandar um ofício», «dirigir uma comunicação ou carta oficial», do que se infere que «se constrói com sujeito agente e com complemento, destinatário, da forma a + nome humano» (Francisco da Silva Borba, Dicionário Gramatical de Verbos do Português Contemporâneo, 1991, p.  954)  como se pode ver em: «Vamos oficiar ao vice-presidente da Comissão de Preços», «O promotor  intervém e afirma que vai oficiar à Procuradoria-Geral da Justiça, pedindo instauração do inquérito criminal».

Enquanto transitivo indirecto, este verbo implica a construção «oficiar a ou oficiar-lhe» (Celso Pedro Luft, Dicionário Prático de Regência Verbal, São Paulo, Ática, 2003, p. 383), uma vez que significa «dirigir ofício ou comunicar por ofício (a alguém): O secretário oficiou ao governador que a escola agradecia a sua ajuda através de subvenções» (idem).

Pergunta:

Frequento um curso de formação e numa das disciplinas tenho de fazer um glossário com expressões sobre habitação e propriedades. Gostaria de saber melhor o significado da expressão «bens ao luar»; é uma expressão muito usada na minha localidade, para designar, acho eu, propriedades imobiliárias, no entanto fiz pesquisa na Internet em vários dicionários em linha e não achei nada.

Agradeço a atenção prestada.

Resposta:

De facto, a expressão «bens ao luar», embora utilizada com uma certa frequência, não se encontra dicionarizada, nem mesmo nas obras sobre expressões e ditos populares.

Tal como «ao luar» sugere, a expressão «bens ao luar» refere-se aos bens imóveis que estão à vista de todos, que não se podem ocultar ou esconder. Assim, os terrenos, as propriedades, os prédios, enfim, os imóveis, entram na área dos «bens ao luar». Alfredo de Sousa, em «Os anos 60 da nossa economia» in Análise Social, vol. XXX (133), 1995 (4.º), refere essa expressão como fazendo parte do uso corrente: «Em Portugal, o proprietário não se referia a bens em título, mas a bens imóveis. Nas nossas expressões correntes temos coisas muito curiosas: os bens ao luar reconhecíveis, ter algo de seu. Tudo isto mostra o apelo quase ontológico dos portugueses à propriedade» (p. 618).

Pergunta:

Os nomes dos cargos públicos do governo são naturalmente masculinos, pois em português prevalece o masculino em diversos casos. Assim temos o cargo de presidente, de governador, de prefeito, de vereador, de juiz, etc.

Assim sendo, devemos dizer que Maria Lúcia de tal foi candidata a "prefeito", ou "prefeita" de tal município? Um vez eleita, diz-se que ela foi eleita "prefeito" de tal município, ou eleita "prefeita" de tal município? Ela é uma "prefeita" ocupando o cargo de prefeito? Todavia não se dirá nunca «o prefeito Maria Lúcia», mas «a prefeita Maria Lúcia».

Não fica estranho um repórter perguntar a uma governadora em uma entrevista: «Quando a senhora foi eleita governador deste Estado, tinha ideia dos desafios que teria pela frente?» Num caso destes, seria mesmo “governadora” que se diz?

Outro caso: «Júlia passou no concurso para juiz.» É assim mesmo?

Se puderem apresentar outros exemplos esclarecedores e completantes, agradecer-lhes-ia muito.

Muito obrigado desde agora.

Resposta:

Há, por um lado, o cargo de prefeito, e, por outro, o prefeito ou a prefeita que fazem o exercício desse cargo. Ou seja, a língua é sexista, porque pressupõe que a designação do cargo, independentemente do sexo de quem o ocupa, é sempre do género masculino. Por conseguinte, quando alguém, mulher ou homem, se candidata ao lugar cimeiro da prefeitura, candidata-se ao lugar de prefeito. Mas quando se encara o exercício do cargo, usa-se o contraste de género: «O candidato a prefeito»/«A candidata a prefeita»; «Ele será/é/foi o prefeito»/«Ela será/é/foi a prefeita». Do mesmo modo, se dirá que «a Rita foi eleita governadora», porque passou a ocupar o cargo de governador.

Já no caso de «Júlia passou no concurso para juiz» é possível usar quer o masculino quer o feminino, em função do que se pretende referir: «Júlia passou no concurso para ocupar o cargo de juiz» vs. «Júlia passou no concurso para se tornar juíza (para passar a assumir o cargo de juiz)». 

Acrescente-se que, dado a pergunta focar algumas funções específicas do Brasil, a nossa resposta baseia-se também na Lei n.º 2749, de 2 de Abril de 1956, que «dá norma ao género dos nomes designativos das funções públicas», critério adoptado por Luiz Autuori e Oswaldo Proença em Nos garimpos da linguagem1. Assim, verificámos que prefeito e juiz não se encontram aí registados (do que se depreende que manteriam a mesma forma no feminino) e retirámos da lista aí apresentada os seguintes casos de formação de feminino de cargos públicos: 

capitão → a capitã ou capitoa

Pergunta:

É ou não pleonástico dizer «Formatar o espaçamento entrelinhas»? Parece-me que sim (espaçamento/entrelinhas) se atender ao facto de entrelinha significar «o espaço entre duas linhas».

Resposta:

De facto, o vocábulo entrelinha significa «espaço entre duas linhas», tal como o consulente afirma, razão pela qual sugere que o mesmo não necessite do termo espaçamento — propondo a presença de pleonasmo na expressão «Formatar o espaçamento entrelinhas» —, termo este que ainda não se encontra registado na maior parte dos dicionários, talvez porque seja uma palavra que ocorra praticamente nos programas de computador, o que significa que pertença a uma terminologia específica, a da informática. Mas não temos a menor dúvida de que o seu sentido terá que ver com o espaço entre as linhas.

A questão que se nos apresenta é que não é sobre a palavra entrelinhas, mas sobre a expressão «entre linhas», que surge no ecrã do nosso computador (pelo menos neste, onde se está a trabalhar) associada a espaçamento, para designar o tipo de espaço que se quer seleccionar entre as linhas (simples, 1,5, duplo, múltiplo…). Ora, isso altera tudo, retirando a possibilidade de ocorrência de pleonasmo nessa indicação, porque não nos encontramos perante a repetição de uma ideia (que o substantivo entrelinha previa).

Com a expressão «entre linhas», marcando a separação da preposição entre — cujo valor está associado a «situação = posição no interior de dois limites indicados, interioridade: no espaço, no tempo ou na noção» (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 13.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 1997, pp. 556-557) — e do substantivo linhas, após espaçamento, os criadores do programa informático foram rigorosos e objectivos na indicação que queriam fornecer: a do espaço — ...

Pergunta:

Qual a origem dos verbos girar e virar? Latim, grego? Qual a diferença ou qual a definição de ambos, posso utilizá-los em qualquer situação que os requeira, substituindo um pelo outro, sem medo de alterar o sentido do enunciado?

Grato.

Resposta:

Segundo José Pedro Machado, no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, o verbo girar deriva do «latim tardio gyrare, “fazer girar em volta, fazer descrever um círculo; girar em volta de», mas coloca dúvidas sobre a etimologia de virar — «talvez do celto-latino virare», verbo latino a que o Grande Dicionário da Língua Portuguesa (2004), da Porto Editora, atribui o sentido de «inclinar-se para um lado».

Relativamente ao seu sentido, não se pode dizer que sejam sinónimos, embora os dois verbos indiquem movimento.

Embora seja ao verbo girar que a etimologia remeta para um movimento circular, «movendo-se em torno de um eixo, de um centro», implicando um «rodar» («a Terra gira à roda do Sol»), um dos sentidos que são atribuídos, também, ao verbo virar é, precisamente, o de «fazer mover ou mover (algo) em torno do próprio eixo, girar, torcer» («virou a chave na fechadura»; «de dentro, víamos a chave que virava lentamente») ou o de «mover o corpo em torno de si mesmo, dar voltas, revirar-se» («virava-se na cama»).

No entanto, é a girar que está mais associada a ideia de um «rodear, circundar» («a sebe gira todo o jardim»), um «alongar-se em voltas, serpentear» («um imenso casarão onde gira um mundo de salas e corredores»), assim como pode transmitir a ideia de «circular, correr» («girava em suas veias o sangue de uma raça guerreira»), de «andar activo, lidar, trabalhar» («as actividades domésticas fazem-na girar do nascer ao pôr do sol») e, também, de «decorrer, escoar-se» (tempo, horas, dias, etc.)». Mas também significa «andar de um lado para outro», «passar (a vista, os olhos) de modo ligeiro por» («girou os olhos pelo aposento»), «percorrer um determinado circuito, passando pelo ponto de partida» («gir...