Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Não entendi muito bem o texto Discurso sobre o fulgor da língua.

Será que podem explicar, comentando sobre o texto?

O texto é um conto?

Grato.

Resposta:

Discurso sobre o fulgor da língua, de José Eduardo Agualusa, é, de facto, um conto cuja acção gira à roda da perspectiva que as três personagens têm sobre a realidade da língua portuguesa, a língua materna dos três intervenientes (o velho alfarrabista brasileiro, o narrador angolano e o português franzino de óculos redondos) que, no texto, irrompe como objecto de interesse e de preocupação, mas, sobretudo, enquanto factor de unidade e, simultaneamente, de diferença.

O conto desenvolve-se em torno de fascínios comuns às três personagens independentemente das diferenças entre elas (a idade, a naturalidade e a cultura), o fascínio pelos livros, desenrolando-se a acção no meio das estantes e das pilhas de livros do velho alfarrabista brasileiro, que se destaca pela sua aparente fragilidade e desorganização, mas que surpreende, desde logo, o narrador pela lucidez com que cita versos dos poetas Cruz e Sousa (brasileiro) e Fernando Pessoa (português), poemas marcados pela musicalidade das aliterações (recurso estilístico que consiste na repetição de sons, o que confere musicalidade ao poema: «E fria, fluente, frouxa», «Vozes veladas, veludosas vozes/volúpias dos violões, vozes veladas», «em torno à tarde se entorna/A atordoar o ar que arde»).

Ora, esse gosto do velho alfarrabista por poemas, em que a língua portuguesa é valorizada por um brasileiro e por um português, transparece a sua atracção pela língua, o que se torna evidente quando questiona o narrador sobre a origem do seu sotaque estranho aos seus ouvidos atentos e habituados aos sons abertos do português do Brasil e aos incompre...

Pergunta:

Qual o aumentativo da palavra bandeira?

Resposta:

Não encontrámos nenhuma forma dicionarizada do aumentativo de bandeira, contrariamente ao que ocorre com o seu diminutivo, para o qual estão registadas três formas: uma regular, bandeirinha, e duas irregulares, bandeirola e bandarilha.

No entanto, apesar de não haver registo em nenhum dos dicionários nem nas gramáticas consultadas, sabemos que há regras para a formação do grau aumentativo dos substantivos, de modo a conferir à palavra uma «significação exagerada, ou intensificada disforme ou desprezivelmente, [emprestando, frequentemente] ao nome as ideias de desproporção, de disformidade, de brutalidade, de grosseria ou de coisa desprezível» (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 17.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 199), o que não significa que o aumentativo não corresponda a uma marca positiva, a um sinal de ampliação eufórica do sentido do vocábulo.

Aliás, essas «noções são expressas em geral pela[s] forma[s] analítica[s], especialmente pelo adjectivo grande, ou sinónimos, que acompanham o substantivo» (idem), o que corresponde à expressão com que verbalizamos usualmente tal grau — «uma grande bandeira». Relativamente a esta expressão, e tendo em conta as conotações que são atribuídas à palavra bandeira, vários são os sentidos que se podem depreender de «uma grande bandeira»:

— o denotativo, para nos referirmos a uma bandeira, realmente, grande em tamanho;

— o que se baseia no sentido metafórico de bandeira como símbolo de uma causa em que se acredite, e, por isso, a forma analítica «uma grande bandeira» expressará a ...

Pergunta:

Porque é que Fernando Pessoa (ortónimo) afirma que «fingir é conhecer-me»?

Resposta:

Nesta parte do poema, o sujeito poético evidencia a consciência da impossibilidade de se conhecer. Apesar de parecer muito complexa, a frase «fingir é conhecer-me» acaba por se revelar simples, pois, se alterarmos a ordem das palavras, verificaremos que tal mudança resultará em «conhecer-me é fingir». Assim, assertivamente, o sujeito poético assume que conhecer-se corresponde a representar, a simular uma verdade.

Com esta afirmação, o sujeito poético transparece, mais uma vez, a angústia que o domina, a de não se libertar do peso da razão, que o constrange e que não lhe permite cair na tentação do ludíbrio de se enganar sobre si próprio, sobre a complexidade da sua natureza, que não lhe dá tréguas. Esta é mais uma forma de evidenciar o seu inconformismo perante a sua realidade, pois sabemos que este sujeito poético tem o cuidado de nos mostrar a sua capacidade (que acaba por ser uma obsessão) de se distanciar de tudo em que esteja envolvido (e o processo de escrita surge como a materialização desse seu estado de alerta constante, enquanto poeta, em que analisa os seus sentimentos para, depois, os poder representar por palavras). Mas a conclusão a que chega é que nem esse processo lhe dá acesso ao autoconhecimento, apesar de criar a figura do sujeito que escreve/observa/analisa sobre o objecto que é ele próprio.

Essa frase parece um paradoxo ou, literariamente falando, um oxímoro, mas verbaliza rigorosamente a sua realidade paradoxal.

Cf.: Fernando Pessoa: 10 das melhores frases do génio

Pergunta:

Na frase «Vomita já essa história toda...», a expressão «vomita» pode ser considerada uma hipérbole, ou é uma metáfora?

Resposta:

O uso da forma verbal «vomita» em vez de «conta já essa história toda» é, antes de mais, um disfemismo, que consiste no «uso de palavras ou expressões de carácter rude, repugnante, desagradável, agressivo ou horrível», recurso estilístico que, «contrariamente ao eufemismo, que suaviza e atenua o que é considerado obsceno ou de mau gosto, visa ferir determinados tabus de ordem religiosa, moral e social, [razão pela qual] as expressões (dis)femísticas são consideradas formas de desbragamento linguístico» (E-Dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia).

De fa{#c|}to, embora pareça estarmos perante uma metáfora — porque há aí a fusão de duas realidades e «uma deslocação de sentido de palavras através do termo intermédio subentendido» (João David Pinto Correia, «A Expressividade na Fala e na Escrita», in Falar melhor, Escrever melhor, Lisboa, Sele{#c|}ções do Reader´s Digest, 1991, p. 502) — e, também, de uma hipérbole, devido à amplificação que a palavra «vomita» transmite, a realidade é que o disfemismo, neste caso, concentra os dois valores das duas figuras de estilo propostas.

Para além disso, para que não haja réstia de dúvida de que nos encontramos em presença de um disfemismo, basta relacionarmos a forma «vomita» com os campos semânticos a que está associada, remetendo para enjoo, náusea, violência, nojo…, termos do domínio desagradável da escatologia.

Pergunta:

Pode o termo dístico ser sinônimo do termo inscrição, e podem ambos se referir a uma só palavra?

Ex.: «"Abnegação" era o dístico que encimava o portal.»

Obrigado.

Resposta:

Se tivermos em conta que a palavra dístico tem, por extensão de sentido, o valor de «lema», «divisa», «letreiro» ou «rótulo», depreendemos que a mesma pode ser utilizada como sinónimo de inscrição («palavra ou frase indicativa colocada em lugar público ou na rua») e que os dois termos podem designar uma realidade contida numa só palavra, tal como o que acontece num lema, numa divisa, num letreiro ou num rótulo.  

Fontes: Dicionário Houaiss Electrónico, 2001; Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2004.