Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

No verso de Camões «Alma minha gentil que te partiste», e perante a questão «Que figura de estilo se liga ao emprego do verbo partir?», qual se deve indicar: metáfora e/ou eufemismo?

Bem haja.

Resposta:

Tratando-se do recurso a uma palavra/forma verbal — partiste — que amenize uma realidade cruel, de forma a atenuar a violência de um termo que reproduza a disforia de tal realidade, não há dúvida alguma de que se trata de um eufemismo, aí usado pelo sujeito poético para evitar a rudeza do campo lexical de «morte».

Apesar de se tratar de um texto do séc. XVI, do Renascimento, em que a literatura estava associada à ideia de beleza, de perfeição e de equilíbrio e, por isso, a morte surge de forma eufemística, esta prática tem-se mantido até aos nossos dias. A morte tem sido, assim, o caso-padrão de recurso ao eufemismo, como se pode verificar através do que nos diz Carlos Ceia, em E-Dicionário de Termos Literários: «Figura de retórica que procede à substituição de uma expressão rude ou desagradável por uma outra que amenize o discurso, embora sem alterar o sentido, por exemplo, "ir para outro mundo" ou “Tirar Inês ao mundo determina” (Camões, Os Lusíadas, III, 123) em vez de "morrer" ou "pessoa de poucos recursos financeiros" por "pobre". O termo é de origem grega (euphemismos, “bem dizer”) e desde sempre foi utilizado para designar as formas de dissimulação de sentimentos desagradáveis, de pensamentos cruéis ou de palavras tabu, que se evitam pelo recurso a uma linguagem mais amaviosa, sem se perder o sentido original de vista.»

Cf. 

Pergunta:

Surgiu-me uma dúvida relativamente à família de palavras de Natal? Natal: natalício, natalidade...

 

Resposta:

Tendo em conta que se considera que pertencem à mesma família de palavras aquelas que partilham o mesmo radical e que estão relacionadas etimológica e morfologicamente, as duas palavras que indicou – natalício e natalidade – são da família de palavras de Natal.

De qualquer modo, importa ter em conta o valor do termo usado.   Quer nos estejamos a referir ao substantivo Natal – enquanto «festa cristã que se realiza todos os anos e que comemora o nascimento de Jesus Cristo» ou «época em que se celebra essa festa» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2010) quer ao adjetivo natal – «respeitante ao nascimento; pátrio» (idem), uma vez que as duas se referem a nascimento, as formas natalício e natalidade  usam-se relativamente a uma e a outra.

É de referir, ainda, que a palavra Natal é, também, um topónimo, pois pode designar «a província de Natal (região da África do Sul) ou a cidade brasileira de Natal, no Rio Grande do Norte. Nestes casos, natalense – «natural ou habitante dessa região ou dessa localidade» — será a palavra que se refere à família deste outro Natal.

Eunice Marta

 

Pergunta:

Gostaria imenso de saber a origem dos meus apelidos Estrada e Rei.

Será que me podem ajudar? Agradecia imenso que satisfizessem esta minha curiosidade!

Resposta:

A obra Antroponímia Portuguesa, do professor  catedrático J. Leite de Vasconcellos (Lisboa, Imprensa Nacional, 1928), um livro de referência por se tratar de um «tratado comparativo da origem, significação, classificação e vida do conjunto de nomes próprios, sobrenomes e apelidos usados por nós desde a Idade-Média até hoje», não menciona o apelido Estrada.

No entanto, tal apelido encontra-se registado em duas outras obras específicas sobre os nomes portugueses, mas as suas informações sobre a origem do apelido Estrada não são coincidentes. Enquanto o Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado (vol. II, Lisboa, Livros Horizonte, 2003) se limita a dizer que é uma «antiga alcunha, do substantivo feminino estrada», As Origens dos Apelidos das Famílias Portuguesas, de Manuel de Sousa (2001), remete Estrada para Duque de Estrada, sobre o qual nos fornece os seguintes esclarecimentos:

«Dizem-nos os genealogistas que esta família provém de Grimaldo, duque de Brabante, e Estralen, sobrinho de Carlos Martel, e que por desavenças com este se viu forçado a buscar refúgio na Península, aqui dando origem aos duques Estrada ou tão-somente Estrada, deturpação do seu nobilíssimo título de duque de Estralen. Tudo isto, porém, é de difícil comprovação. O que se sabe é que no reinado de D. Afonso V veio para Portugal João Estrada e, durante a ocupação filipina, o cardeal Alberto, arquiduque de Áustria, trouxe consigo João Duque Estrada, cavaleiro da cidade de Antuérpia. As suas armas são: escudo partido, sendo o primeiro de ouro, com uma águia estendida de negro, coroada do mesmo, e o segundo de azul, com três bandas de ouro carregadas de sete mosquetas de arminho, postas duas, três e duas. Timbre: a águia do escudo....

Pergunta:

Gostaria de saber qual o feminino de camaleão.

Resposta:

Decerto que camaleão se trata de um substantivo epiceno, pois tudo indica que pertence ao grupo dos «nomes dos animais que possuem um só género gramatical para designar um e outro sexo» (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 13.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 1997, p. 196), uma vez que não encontrámos registada uma forma de feminino para essa palavra na pesquisa que realizámos em bibliografia específica sobre o feminino1 (nem mesmo nas que se referem ao feminino dos animais)2.

É de referir, também, que o Vocabulário Ortográfico do Português, da responsabilidade do ILTEC, regista, simplesmente, o seguinte sobre o termo camaleão:

«ca.ma.le.ão,

nome masculino 

Singular    camaleão
Plural    camaleões
    
variação ortográfica: cameleão.»

Não há dúvida, portanto, de que é um substantivo epiceno, que só no plural se altera.

No entanto, se se quiser evidenciar o sexo feminino de camaleão, pode-se-lhe acrescentar a palavra fêmea — o «camaleão-fêmea» ou «a fêmea do camaleão».3

1 Dicionário de Masculinos e Femininos, de Aldo Canazio (Rio de Janeiro, Liv. Freias Basto, 1960); Nova Gramática do Português Contemporâneo, ob. cit.

Pergunta:

                    Auto-retrato

 

O'Neill (Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de através
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a viagem de tal sujeito é o que vês
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada...).

Gostaria que me indicassem 5 deícticos no texto.

Obrigado.

Resposta:

Antes de se indicar alguns dos deícticos presentes no poema Auto-Retrato, de Alexandre O’Neil, é de referir que «os deícticos remetem verbalmente para referentes específicos do acto enunciativo» (Dicionário Terminológico). Trata-se, por isso, de signos que «assinalam o sujeito enunciador, o sujeito a quem se dirige o acto enunciativo, o tempo e o espaço da enunciação» (idem), tendo como «ponto primordial de cálculo o sujeito que fala, no momento em que fala». Portanto, têm valor de deícticos «os pronomes pessoais, os pronomes e determinantes possessivos, os pronomes e determinantes demonstrativos, os artigos, os advérbios com valor locativo e temporal, os tempos verbais e ainda algumas preposições e locuções prepositivas, alguns adjectivos e alguns nomes […] que tenham valor referencial, ou seja, que designem entidades reconhecíveis num determinado contexto discursivo» (idem).

Tendo em conta que o poema Auto-Retrato gira à roda da tentativa da construção da imagem do sujeito poético, da sua caracterização física e psicológica, vários são os signos com valor referencial do próprio sujeito poético, razão pela qual se trata, nesse contexto discursivo, de deícticos quando se observam os seguintes exemplos: 

— «O'Neill (Alexandre)», o próprio nome que o designa e identifica;
— « tal sujeito»;
— « o que»
— «os seus quês»
— «aqui».