Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber o significado dos seguintes provérbios:

«Em outubro pega tudo.»

«Outubro seca tudo.»

«Em outubro, centeio ruivo.»

Resposta:

O significado dos três provérbios está relacionado com as realidades agrícolas do mês de outubro, que, por sua vez, resultam das condições atmosféricas (conhecidas pela sua irregularidade). Por isso, deparamo-nos com provérbios totalmente antagónicos, como se pode verificar através da análise de cada um:

«Em outubro pega tudo» – em outubro, nasce tudo o que se planta (devido à chuva que rega os campos).

«Outubro seca tudo» – em outubro, sem a presença da chuva, tudo o que se plantou morre.

«Em outubro, centeio ruivo.» – em outubro, os cereais estão prontos a ser colhidos.

Fruto das diferenças meteorológicas características deste mês (a chuva, o vento e o tempo fresco proporcionam o nascimento e a renovação dos campos, assim como a falta de chuva e o tempo quente impossibilitam o desabrochar das plantas), vários são os provérbios que representam essas duas realidades de conteúdo oposto:

Outubro – mês/tempo de vida/água e de abundância (chuva = rega; colheita dos cereais: trigo, centeio, milho):

«Com a vinha em outubro, come a cabra, engorda o boi e ganha o dono»/«No outono o Sol tem sono. »/«Em outubro pega tudo.»/«Quem planta no outono, leva um ano de abono»/«Outubro, pega tudo.»/«Outubro, rega tudo.»/«Outubro chuvoso faz ano venturoso.»/«Outubro chuvoso torna o lavrador venturoso.»/«Outubro chuvoso torna o lavrador virtuoso.»/«Outubro meio chuvoso torna o lavrador venturoso.»

«Outubro paga tudo.»/«Outubro, vaca para o palheiro e porco para o outeiro.»

«Outubro é o maio do outono.»/«Em outubro semeia e cria, terás alegria.»

Pergunta:

Ao preparar algumas lengalengas para o meu dia a dia, deparei-me com uma palavra da qual desconheço completamente o seu significado, engravelar. É uma lengalenga relacionada com o trabalho agrícola e refere-se a agosto da seguinte forma: «Agosto, engravelar.» Deste modo, decidi recorrer ao vosso apoio, e engravelar quererá dizer...

Resposta:

Da pesquisa que realizámos, apercebemo-nos de que duas formas desse verbo ocorrem nas lengalengas e nos provérbios portugueses relativos aos meses e, mais especificamente, a agosto: engravelar e engavelar. Aliás, o Livro dos Provérbios Portugueses (Lisboa, Ed. Presença, 2004), de José Ricardo Marques Costa, regista as duas formas, como se pode verificar através dos exemplos retirados da lista de provérbios sobre o tempo atmosférico:

«Janeiro, gear. Fevereiro, chover. Março, encanar. Abril, espigar. Maio, engrandecer. Junho, ceifar. Julho, debulhar. Agosto, engavelar. Setembro, vindimar. Outubro, revolver. Novembro, semear. Dezembro, nascer.»

«Janeiro, gear. Fevereiro, chover. Março, encanar. Abril, espigar. Maio, engrandecer. Junho, ceifar. Julho, debulhar. Agosto, engavelar. Setembro, vindimar. Outubro, revolver. Novembro, semear. Dezembro, nasceu Deus para nos salvar.»

«Julho, debulhar. Agosto, engravelar

«Outubro, revolver. Novembro, semear. Dezembro, nasceu Deus para nos salvar. Janeiro, gear. Fevereiro, chover. Março, encanar. Abril, espigar. Maio, engrandecer. Junho, ceifar. Julho, debulhar. Agosto, engravelar. Setembro vindimar.»

No entanto, os dicionários1 e os vocabulários ortográficos2 contemplam unicamente o termo engavelar (en + gavela + -ar), verbo que significa «enfeixar; atar/dispor (o trigo) em gavelas; antes de ser debulhado ou depois da ceifa», correspondendo o termo gavela a «feixe de espigas cortadas; braçada; punhado». Ora, se tivermos em conta o processo das atividades agrícolas relacionadas com os meses que deu origem ao provérbio e às lengalengas, verificamos que ...

Pergunta:

Gostava de saber qual o significado da expressão «chapada de luva branca»? Pode me dar alguns exemplos do seu uso?

Resposta:

A expressão mais conhecida é «bofetada de luva branca» ou «bofetada de luva de pelica», que significa «resposta delicada, apropriada a uma ofensa» (Orlando Neves, Dicionário das Expressões Correntes, Lisboa, Ed. Notícias, 1999).

É uma expressão usada com bastante frequência como elogio a alguém que tem a arte de ser subtil (mas assertivo) na resposta a algo desagradável que sofreu, de que foi vítima. Trata-se, portanto, de uma expressão metafórica e, simultaneamente, irónica, em que se procura traduzir a ideia de uma situação em que sobressai a inteligência e a subtileza do atingido como forma de retribuir ou responder a uma agressão. Com este ato, a vítima ultrapassa o seu agressor, não respondendo da mesma maneira, não se exaltando, nem enervando. A sua superioridade é evidenciada pelo seu sangue-frio, pelo distanciamento a que se impôs para não descer ao nível do outro.

Pergunta:

As palavras ler e cedo alguma vez se escreveram com acento circunflexo?

Resposta:

Segundo José Pedro Machado, e tendo como base documentos medievais, «a forma antiga [do verbo ler] era leer, em 1258-1261: “mandóó léér ante si... fezeron léér antel a carta...”, Andrés Martinez Salazar, Documentos gallegos de los siglos XIII al AVI, pp. 33, 40, 41» (Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa).

De facto, não encontrámos nenhum registo do infinitivo do verbo ler com acento circunflexo, mesmo nos vocabulários ortográficos mais antigos (Vocabulário Ortográfico e Ortoépico da Língua Portuguesa, de A. R. Gonçálvez Viana, 1909; Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, 1940; Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves, 1966). No entanto, é de referir que há algumas formas da conjugação do verbo ler que têm acento circunflexo1lês (2.ª pess. sing. do pres. ind.) e (3.ª pess. sing. pres. ind. e 2.ª pess. sing. do imper.) –, tendo sido retirado esse acento à 3.ª pessoa do plural do presente do indicativo2 – do que resulta a recente forma leem – pelo novo acordo ortográfico.

Note-se que essa forma antiga leer resulta da aférese (queda de um fonema no meio de uma palavra) do g e da apócope (queda do e final) do seu étimo latino «lĕgĕre, "recolher, apanhar; enrolar, enovelar, apanhar e esconder, tirar, roubar; percorrer (um lugar); escolher; captar com os olhos, passar pela vista; ler em voz alta"» (idem).

A diversidade de sent...

Pergunta:

Num período composto, como descubro o sujeito de base oracional? Por exemplo, qual é o sujeito do período «Trabalhar no Tribunal de Justiça é um grande sonho meu»?

Resposta:

A dificuldade em se identificar o sujeito da frase apresentada deve-se ao facto de a mesma não estar formulada na ordem direta.

Repare-se na seguinte forma:

«Um sonho meu é trabalhar no Tribunal de Justiça.»

Decerto que o consulente não teria tido dúvidas, porque o sujeito – «um sonho meu» – foi colocado na posição que está normalizada (antes do predicado).

Assim, analisando-se sintaticamente a frase:

Sujeito – «Um sonho meu»

Predicado – «é trabalhar no Tribunal de Justiça» (ser = verbo copulativo1)

Predicativo do sujeito – «trabalhar no Tribunal de Justiça».

1 Entende-se por verbos copulativos ou verbos de ligação os que «servem para estabelecer a união entre duas palavras ou expressões de caráter nominal (...), funcionando apenas como elo entre o sujeito e o seu predicativo» (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2003, p. 134). São exemplos de verbos copulativos: ser, estar, ficar, continuar, parecer, permanecer. Exemplos: «Ele é magro.» «Ela está doente.» «Tu ficaste triste.» «Nós continuamos atentos.» «Ela parece simpática.» «Eles permaneceram calados.»