Eugénio de Andrade - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eugénio de Andrade
Eugénio de Andrade
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Eugénio de Andrade, pseudónimo de José Fontinhas Rato (Póvoa de Atalaia, 1923 — Porto, 2005). Poeta português, viveu em Lisboa e Coimbra até se instalar no Porto em 1950, onde foi inspetor administrativo do Ministério da Saúde.  Escreveu os seus primeiros poemas em 1936, publicando em 1939 Narciso. Alcançou enorme prestígio nacional e internacional, embora se tivesse sempre distanciado da vida social, literária ou mundana. Ganhou várias distinções de que se destaca o  Prémio Camões em 2001. Autor de As mãos e os frutos (1948), As palavras interditas (1951), Escrita da Terra (1974), Matéria Solar (1980), Rente ao dizer (1992), Ofício da paciência (1994), O sal da língua (1995) e Os lugares do lume (1998). Em prosa, entre outras obras, escreveu Os afluentes do silêncio (1968), Rosto precário (1979) e À sombra da memória (1993).

Cf.  Falecimento de Eugénio de Andrade + No centenário do nascimento do poeta português Eugénio de Andrade (1923-2005) Voltar a ler Eugénio como se fosse a primeira vez +  Eugénio de Andrade + Em louvor de Eugénio de Andrade + Documentário da RTP + Eugénio de Andrade homenageado na Feira do Livro do Porto

 
Textos publicados pelo autor


Recomecemos então, as mãos
palma com palma.
Diz, não digas, a palavra.
As palavras terão sentido ainda?
Haverá outro verão, outro mar
para as palavras?
Vão de vaga em vaga,
de vaga em vaga vão apagadas.
Seremos nós, tu e eu, as palavras?
Onde nos levam, neste crepúsculo,
assim palma com palma,
de mãos dadas?


Obedecem-me agora muito menos,
as palavras. A propósito
de nada resmungam, não fazem
caso do que lhes digo,
não respeitam a minha idade.
Provavelmente fartaram-se da rédea,
não me perdoam
a mão rigorosa, a indiferença
pelo fogo-de-artifício.
Eu gosto delas, nunca tive outra
paixão, e elas durante muitos anos
também gostaram de mim: dançavam
à minha roda quando as encontrava.
Com elas fazia o lume,
sustentava os meus dias, mas agora
estão arisca...


Respiro a terra nas palavras,
no dorso das palavras
respiro
a pedra fresca de cal;
-
respiro um veio de água
que se perde
entre as espáduas
ou as nádegas;
respiro um sol recente
e raso
nas palavras
com lentidão de animal.


Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém — mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar.
Para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.


Língua:
língua de fala;
língua recebida lábio
a lábio; beijo
ou sílaba;
clara, leve, limpa;
língua
da água, da terra, de cal;
materna casa da alegria
e da mágoa;
dança do sol e do sal;
língua em que escrevo;
ou antes: falo.