Edite Prada - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Edite Prada
Edite Prada
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Edite Prada é consultora do Ciberdúvidas. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português/Francês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; mestrado interdisciplinar em Estudos Portugueses, defendido na Universidade Aberta de Lisboa. Autora de A Produção do Contraste no Português Europeu.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

No apoio a um aluno, surgiram-me duas dúvidas relativamente à análise sintática de dois elementos de uma frase. Esta é a seguinte:

«(...) o mano Guanes, como mais leve, devia trotar para a vila vizinha de Retortilho (...)»

O primeiro caso prende-se com o elemento entre vírgulas: aposto (acresce uma informação sobre o sujeito), ou complemento circunstancial de causa [modificador de grupo verbal pela nova terminologia — devia trotar (ele)]? Porquê?

O segundo caso está no verbo «trotar (para a vila vizinha de Retortilho)». Será um complexo verbal (em que «trotar» surge como verbo intransitivo)? Ou será como complemento direto de «devia», juntamente com o resto da frase «para a vila de Retortilho», introduzindo o verbo «trotar» uma oração substantiva integrante?

Gostaria de ter a vossa opinião.

Obrigado pelo vosso belo trabalho.

Resposta:

1 – «como mais leve»

A questão que apresenta é pertinente, ainda que não de resposta simples, ou, mesmo, única… Se analisarmos o que se diz acerca do modificador apositivo do nome, veremos que ele é apresentado, maioritariamente, como podendo ser:

a) um grupo nominal — «D. Afonso Henriques, o Conquistador, foi o primeiro rei de Portugal.»
b) um grupo adjetival — «O Joaquim, jovem e trabalhador, tem tido sucesso na vida.»
c) um grupo preposicional — «A investigação, de valor incontestável, tem o apoio da Gulbenkian.»
d) uma oração subordinada adjetiva relativa explicativa — «O Joaquim, que é jovem e trabalhador, tem tido sucesso na vida.»

Evanildo Bechara, porém, na sua Moderna Gramática Portuguesa, considera que o aposto pode ter dois valores centrais:

a) Especificativo, em que um nome, muitas vezes nome próprio, complementa a informação de outro ocorrendo em adjacência, sem qualquer tipo de separação diacrítica: «o rio Amazonas»;
b) Explicativo, que contém informação acrescida sobre o nome e que ocorre entre vírgulas. Este aposto pode veicular valores secundários dos quais o autor destaca três:

1 – Enumerativo: a explicação consiste num desdobramento enumerativo que segue palavras como tudo, nada, ninguém, etc.: «Tudo — alegrias, tristezas, preocupações — ficava estampado logo no seu rosto», p. 457.
2 – Distributivo: «Machado de Assis e Gonçalves Dias são os meus escritores preferidos, aquele na prosa, este na poesia.»
3 – Circunstancial (comparação, tempo, causa, etc.). Pode, ou não, ser introduzido por palavra indutora do sentido: «As estrelas, como grandes ol...

Pergunta:

Nesta entrada respondida pela Edite Prada (que agradeço a sua muito boa explicação e introdução à obra!) lia-se que o nome da aldeia do livro «assenta nas características inusitadas da aldeia. Se, cantando, a garganta pode secar, e beber poder ser considerado uma recompensa, chorando tal não acontece, e beber torna-se desnecessário». Permitam-me discordar. Acho que beber não se tornará assim tão desnecessário, à partida (sinto-me agora como quando estava no secundário, quando me entediava com todas as significações que se dava a todas a vírgulas de Os Lusíadas e outras obras. Mas agora sou eu que estou a "alinhar" neste papel).

Discordo desta última parte e pergunto-vos:

– Não terá esta alteração somente o propósito de assentar o provérbio nas características da aldeia? Porque, no mesmo tom humorístico... sarcástico... hum..., até, se calhar, irónico da obra, se, cantando, a garganta pode secar, e beber pode ser considerado uma recompensa; chorando, uma pessoa desidrata e, bebendo, compensa a perda de líquidos, "por isso, chorem, chorem, seus choramingões, e continuem na vossa melancolia, que, bebendo, isso passa". Ou, até, se beberem álcool, seria mais um "chorem, chorem, que depois a pinga vos animará".

Não seria mais esta a ideia?

Resposta:

A literatura é, sabemo-lo todos, um mundo quase infinito de significação, que se vai produzindo no diálogo, individual, mas sem perder a carga coletiva do tempo-espaço quer da produção, quer da receção de uma dada obra. Perante esta realidade, quem poderá dizer qual a leitura, ou interpretação, mais adequada de uma determinada situação? Talvez, recorrendo ao aviso inscrito no muro de Chora-Que-Logo-Bebes, «quem não andar espantado de existir».

No momento em que respondi, e partindo da análise que expus, sintetizei da forma que cita a interpretação que fiz relativamente à alteração do provérbio «Canta, que logo bebes», transformado, na obra, em topónimo com alteração do verbo inicial, sendo o nome da aldeia Chora-Que-Logo-Bebes.

Num local onde a humidade é tanta, que as pessoas ganham verdete, pareceu-me na altura, e parece-me hoje, que beber não será um prémio de grande monta. A meu ver, esse prémio — facultar bebida aos chorões — é mais um elemento que ilustraria o desconcerto que aquela comunidade é. Até porque eles não param de chorar… E, todavia, essa interpretação é possível. A prova é que o consulente a formula!

Eu diria que a sua interpretação não é a ideia, mas é, tal como a minha, mais uma ideia. Porque, em interpretação de obras literárias como a que está em análise, se alguma coisa é proibida, é o uso do advérbio somente. Com ou sem realce. Num grito, ou num sussurro!

Pergunta:

Acabei de ler a resposta assinada por Edite Prada, em 17/12/2004, a uma pergunta a respeito da expressão, cada vez mais frequente, «eu não me acredito». Fiquei bastante surpreendida ao descobrir que é uma expressão correta, mas não entendi se se aplica apenas na primeira pessoa ou se o verbo acreditar-se tem um duplo sentido («acreditar»/«crer» e «tornar-se credível»). É que ouvi há pouco a expressão «as pessoas acreditem-se nisto» e confesso que me soou mal mas, mais do que isso, surpreendeu-me por ter sido proferida por uma professora de Português.

Gostaria de saber se também está correto.

Resposta:

Quando penso na língua portuguesa, é-me, por vezes, confortável associá-la a uma casa, onde as palavras e as frases possíveis a que podem dar origem se abrigam. Nessa casa, há um quarto muito arranjadinho, onde se aloja a norma e do qual saem os discursos formais, muito bonitinhos, respeitando (quase) todas as normas e nas quais todos nos revemos. Nos outros quartos há alguma desarrumação. Todas as palavras do quarto arrumadinho podem entrar nos outros, mas há algumas que não podem entrar no tal quarto arrumadinho. A expressão «eu não me acredito» ou «as pessoas acreditem-se nisto» tem lugar na casa que aloja a língua portuguesa, embora não fosse lá muito bem aceite se quisesse entrar no quarto arrumadinho…

O que digo na resposta que refere é que o verbo acreditar tem, na língua portuguesa, uma forma pronominal. Digo ainda que a essa forma pronominal estão associadas duas interpretações… uma das quais é mais antiga e popular, talvez mesmo regional, na qual o pronome tem um efeito enfático característico da expressão oral.

Isso não quer, pois, dizer que faça parte do que convencionamos chamar português-padrão, ou norma-padrão. Tem guarida na casa da língua, mas não no quarto arrumadinho…

A consulente, como eu, conhece certamente (pessoalmente utilizo, mesmo — idealmente em contextos restritos) palavras ou expressões que não utilizaria num discurso formal. E, todavia, essas palavras ou expressões fazem parte da nossa língua!

Outro aspeto que a expressão em apreço tem e que me soa mal (não faz parte da «minha» variedade regional…) é a forma do verbo acreditem (assumindo que é mesmo «acreditem»). Eu diria, naquele contexto, «acreditam». E, contudo, a forma — oral, entenda-se — acreditem, representando o presente do indicativo do verbo ...

Pergunta:

Será que a palavra telenovela é composta por aglutinação, ou derivada por prefixação?

Resposta:

Vale a pena alertar, antes de mais, para o facto de os conceitos de aglutinação e de justaposição não serem contemplados no Dicionário Terminológico, no qual se refere, seguindo os estudos mais recentes, a utilização de critérios morfossintáticos para classificar as palavras compostas. Neste âmbito, e relativamente à composição, falar-se-á de composição morfológica, quando a composição se efetua entre um radical e uma palavra (ou dois radicais…), ou de composição morfossintática, quando a ligação se estabelece entre duas, ou mais, palavras.

Neste contexto, e tendo em conta que tele-, do grego teleos, é um elemento, ou radical, não autónomo, poderíamos classificar a palavra como um composto morfológico.

Pela mesma razão, se tivéssemos em conta a análise formal aglutinação versus justaposição, seria uma palavra composta por justaposição. Há ainda a considerar que, em alguns dicionários, a palavra é apresentada como sendo formada a partir de tele(visão) + novela e não partindo de tele- + novela.  Se partirmos da primeira destas possibilidades, então estamos perante um processo irregular de formação de palavras, sendo uma palavra formada por amálgama.

Por outro lado, se confrontarmos o Dicionário Terminológico (DT) com o texto do novo Acordo Ortográfico, parece haver alguma discrepância. Isto porque os elementos não autónomos, como tele- (que, em alguns dicionários, por exemplo, o Houaiss, são c...

Pergunta:

É comum, aqui, o uso, pelas construtoras, da palavra pergolado em vez de pérgola ou pérgula. Está correto? Me parece que é o mesmo que usar piscinado ao invés de piscina.

Resposta:

A palavra pérgula, ou pérgola («espécie de passeio com cobertura em forma de ramada decorativa», segundo o dicionário em linha da Porto Editora), não tem associado um verbo como "pergular", pelo que a formação do adjetivo verbal "pergulado" não parece adequada.

De alguma forma, para o falante comum, dizer de uma casa que tem uma pérgula que é uma casa pergulada será, como o consulente refere, como dizer de uma casa com piscina que é uma casa piscinada.

Porém, pelo que é dito, o termo é usado pelas construtoras e pode assumir, por isso, não a forma de uma palavra comum do léxico geral da língua, mas, sim, a de um termo específico de uma dada atividade. Nesse contexto, enquanto termo integrante da terminologia característica de uma atividade, o termo é legítimo, sem que, por isso, a palavra se torne de uso comum. Na verdade, várias áreas do saber ou diversas atividades utilizam termos específicos, quer criando-os, quer reformulando-os, quer, mesmo, usando termos estrangeiros, ou, ainda, atribuindo a uma dada palavra do léxico comum um sentido muito específico compreendido só pelos especialistas da área a que o termo pertence.

Poderá ser neste contexto que a palavra, ou adjetivo, pergulado seja usada e, aí, enquanto termo específico, a palavra será legítima, ainda que de uso restrito.