Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber quando foi usada pela primeira vez a palavra currículo no sentido de «currículo escolar».

Resposta:

Por enquanto, não sabemos se conseguiremos identificar a primeira ocorrência de currículo na acepção que o consulente refere. Trata-se de uma tarefa que requer investigação exaustiva, o que idealmente implica ter toda a documentação disponível, não só constituída por dicionários ou outro material descritivo mas também por uma amostra representativa dos textos da época em que se estima ter surgido a palavra.1

De dois dicionários etimológicos de que disponibilizamos, um deles (o Dicionário Etimológico de José Machado) nem sequer apresenta o vocábulo; o segundo, de Antônio Geraldo da Cunha, refere só «séc. XX», sem mais. Entre os dicionários gerais com informação etimológica, o Dicionário Houaiss, em relação a currículo enquanto «documento que reúne dados sobre a vida pessoal, académica e profissional de um indivíduo», remete para o já referido dicionário de Antônio Geraldo da Cunha; a respeito de currículo como «acto de correr», «atalho» e «programação total ou parcial de um curso ou de matéria a ser examinada» (regionalismo brasileiro), o referido dicionário remete para a 1.ª edição, de 1899, do Novo Diccionário da Língua Portuguesa, do lexicógrafo português Cândido de Figueiredo. De facto, parece ser assim, pelo menos, a julgar pela consulta que fizemos do dicionário de Cândido Figueiredo, na sua 3.ª edição de 1922, onde se consigna a forma currículo nas acepções de «acto de correr»», «curso», «atalho» e ainda, como brasileirismo, «parte de um curso literário». O Diccionario da Lingua Portugueza, de Fernando Mendes e publicado em 1904 em Lisboa, grafa a palavra como "corrículo" (estamos no período anterior às reformas iniciadas em Portugal em 1911), mas apenas no sentido de «acção de correr; curso», sem nenhuma referência à semântica brasileira da palavra. Nada pudemos apurar acerca da...

Pergunta:

Gostaria de saber se existe algum recurso, preferencialmente na Internet, que me permita a busca por uma palavra ou conjunto de palavras que façam parte da definição de uma outra.

Por exemplo, eu introduzia as palavras erro e raciocínio, e era-me devolvida, entre outras, se as houvesse, a palavra paralogismo.

Resposta:

Na Internet, ignoro. Sei, porém, da possibilidade de pesquisa reversa (a tal «pesquisa ao contrário») no Dicionário Eletrônico Houaiss: insere-se uma palavra e, desde que esta tenha sido utilizada nos verbetes, obtém-se uma lista de palavras em cujas definições ela participa. Em edição impressa, há os chamados dicionários ideológicos ou analógicos; posso recomendar Artur Bivar, o Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa (Porto, Edições Ouro, sem data).

Pergunta:

As expressões culinárias «espinheta de bacalhau» e «punheta de bacalhau» pertencem ao mesmo nível de língua?

Qual a origem etimológica das duas expressões?

Resposta:

Entre os dicionários que consultei, só a 10.ª edição revista do dicionário de  Morais (Lisboa, Confluência/Livros Horizonte, 1980), regista punheta, que além de significar «exercício de auto-masturbação masculina», também tem a acepção de «acepipe de bacalhau cru desfiado, preparado com cebola, alho, pimenta, azeite e vinagre». O mesmo dicionário consigna a forma espinheta como variante de espineta, mas a esta palavra não atribui outro sentido que não seja o de «antigo instrumento de cordas e teclas, anterior ao cravo».

De qualquer modo, numa rápida consulta à Internet, verifiquei que tanto espinheta como punheta se reportam ao prato confeccionado com bacalhau cru. Numa página, da autoria de Nuno Rebocho, encontra-se uma explicação etimológica, que os dicionários que consultei não confirmam:

«Vamos à espinheta. Dessalgada a conserva do bacalhau, memória do tempo de “fiel amigo”, era só desfiá-lo para a gamela, tirar-lhe as espinhas. Cebola e alho picados, muito picados, coentro e salsa do mesmo modo. Azeitado o conjunto, um nada de vinagre, e era só amassá-lo à mão. Daí o de algum modo justificar-se o derivativo do nome que erradamente perdurou — a punheta.»

Em conclusão, espinheta e punheta são termos técnicos, do campo da culinária, mas o uso de punheta parece ser uma extensão metafórica de um termo que pertence originalmente ao nível calão (cf. Dicionário Houaiss, qu...

Pergunta:

Gostaria de saber como fazer a divisão silábica e a translineação da palavra colmeia. Esta junção de três vogais é chamada de tritongo, ou se passa com palavras como quais, quão?

Obrigada.

Resposta:

A divisão silábica gráfica é a seguinte: col-mei-a.

A sequência "eia" não é um tritongo, antes inclui duas sílabas. No entanto, o facto de i constituir uma semivogal torna possível interpretá-la como fazendo parte de ambas as sílabas, como se a pronúncia fosse "eiia". Por este motivo, há quem considere que o "eia" de ceia e colmeia ou o "eio" de meio são também tritongos.

Observe-se que, a rigor, se considera como tritongo a sequência formada por uma vogal e duas semivogais: negocieis = negoc[jɐj]s. Não é este, no entanto, o caso de colmeia.

Na translineação, a palavra é separada como segue: col-meia.

Pergunta:

Gostava de saber qual a origem etimológica da palavra Boadela, uma vez que designa uma pequena aldeia nortenha. Na mesma há vestígios da passagem do povo romano, e, inclusive, vestígios de um povo castrense.

Resposta:

Boadela ou Aboadela são as formas do nome de povoações das zonas de Amarante e Lamego. José Pedro Machado (Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa) indica que num documento do ano de 954 ocorre a grafia Abohadella, considerando que deve tratar-se da adaptação do nome próprio árabe abū ´abd allaH, «pai do servo de Deus», que, segundo o mesmo autor, deu também a forma Bobadela, que ocorre nas zonas de Amarante, Oliveira do Hospital, Chaves, Boticas, Loures, bem como na Galiza, na região de Celanova e Allariz (Ourense). Com este nome, Machado relaciona também Boabdil, adaptação românica divergente (de origem andaluza) do nome do último rei mouro de Granada.

É, portanto, provável que este topónimo do Centro e do Norte de Portugal esteja ligado a um nome próprio árabe, o que não é de admirar, dada a importância das comunidades moçárabes no Centro de Portugal e as possíveis deslocações de população na extensa zona de fronteira cristã-muçulmana existente na Alta Idade Média. Que o nome apareça no Sul da Galiza também não é de estranhar, porque a zona de Celanova encontra-se ligada ao monarquismo do século X, que compreende uma importante componente moçárabe.

Mesmo assim, cabe perguntar se estamos realmente a lidar com um antropónimo árabe. É que os que existem espalhados entre o Norte e o Centro de Portugal terminam em -e, evolução do -i do genitivo latino que era sufixado a esses antropónimos, já na sua adaptação ao romance galego-português ou moçárabe: Afife (Viana do Castelo) < Afifi < árabe `afif, «casto, decente, virtuso»; Ceide (Guimarães, Famalicão) < *Ceidi<...