Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A palavra "ambientalizar" existe?

Resposta:

O verbo ambientalizar está bem formado, mas não está dicionarizado. Em contrapartida, existe ambientar, nas acepções de «adequar(-se), adaptar(-se) a um ambiente» e «desenrolar-se». A primeira destas acepções parece-me também o significado mais provável de ambientalizar, pelo que este neologismo, sem corresponder a uma nova realidade ou a uma necessidade expressiva, pode ser visto como redundante no conjunto do léxico português. Não obstante, encontro uma ocorrência de ambientalizado, particípio passado empregado adjectivalmente, no Corpus do Português, de Michael Ferreira e Mark Davies:

«Assim, Alencar revela o ancestral não apenas grandioso mas sacralizado e ambientalizado sob a forma de mito.»

Pergunta:

Gostaria de saber qual a palavra para o acto de definir critérios. Diz-se "criterização"?

Dou como exemplo conceito, cuja palavra derivada que tem essa função é conceptualização.

Podem ajudar-me?

Obrigado.

Resposta:

Criterização é morfologicamente possível, com o sentido atribuído pelo consulente, ou seja, «acto de definir critérios»; o mesmo se diga acerca do verbo que pressupõe, criterizar. No entanto, trata-se de palavras que ainda não estão dicionarizadas e que nem sequer aparecem nos corpora linguísticos consultados (isto é, colecções de textos informatizadas para acompanhamento e pesquisa do uso linguístico; por exemplo, Corpus do Português, CetemPúblico e corpora do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa). Mesmo assim, recorrendo ao Google, obtêm-se 128 resultados de criterização em páginas da Internet. O facto de tratar-se de contextos recentes sugere que estamos perante um neologismo em desenvolvimento.

Pergunta:

Por mais que eu tenha exaustivamente lido sobre o assunto, não consigo identificar quando uma oração está elíptica ou não. Exemplo retirado de uma das provas de concurso mais conhecidas do Rio de Janeiro, Brasil:

Qualquer canção de amor

1 – É uma canção de amor

2 – Não faz brotar amor e amantes

3 – Porém, se esta canção

4 – Nos toca o coração

5 – O amor brota melhor e antes

(Chico Buarque)

O gabarito foi o seguinte: há elipse apenas na última frase, mas não há elipse na segunda frase. É isso que eu não entendo! Por que não há elipse na segunda frase?! Ajudem-me! Obrigado.

 

Resposta:

Considera-se que há elipse, quando, para evitar redundâncias, se omitem constituintes numa frase ou oração que podem ser recuperados por intermédio de outra. Penso que o exercício apresentado é discutível, porque aborda um tema controverso da análise gramatical. Assim:

1. Quer na frase 2 quer na frase 5 ocorre a conjunção coordenada e a ligar orações coordenadas. Alguns gramáticos, tendo em conta que e é uma conjunção coordenativa copulativa e, portanto, só pode operar sobre orações, diriam que há elipse em ambas:

(2)´ Não faz brotar amantes e (não faz brotar) amantes

(5)´ O amor brota melhor e (o amor brota) antes.

Mas, segundo outros autores, a coordenação também ocorre com outros tipos de constituinte. Nesse caso, consideraríamos «Não faz brotar amor e amantes» uma única oração em que existe uma estrutura de coordenação que integra dois complementos directos («amor» e «amantes»).

Contudo, a interpretação (5)´ pode não ser a mais adequada. Com efeito, se é possível ler «o amor brota melhor e brota antes», outra leitura parece mais consistente: «o amor brota melhor e (quando brota melhor é) antes». Apesar de «melhor» e «antes» serem adjuntos adverbiais, o que poderia dar passo à sua coordenação, a interpretação alternativa é legitimada pelo facto de  haver uma relação hierárquica entre tais adjuntos, porque «antes» modifica não o verbo «brota» mas sim a sequência «brota melhor». Por isso, pode falar-se de elipse em (5) uma vez que se afasta a repetição de «brota melhor». No fundo, a coordenação de «antes» no verso de Chico Buarque acaba por ser uma engenhosa forma sintáctica de destacar este advérbio em relação à oração a que está coordenado.

Pergunta:

Existe a palavra globalizável?

Resposta:

Se existe o verbo globalizar, é claro que se pode formar o adjectivo globalizável, com o sentido de «susceptível de se globalizar». De notar que muitos adjectivos em -vel não se encontram dicionarizados, tal é a produtividade deste sufixo no português contemporâneo.

Pergunta:

Quase por acaso, li a pergunta e a resposta Sobre parentescos (23/04/2007). Quando fui confrontado com a mesma dúvida que a da consulente Carla Pires, respondi da mesma maneira que A. Tavares Louro, só que acrescentei: «os avós» deve ser o único caso em que um nome feminino plural engloba um masculino. Caso único na "machista" língua portuguesa.

Resposta:

As línguas em que há dois géneros são normalmente "machistas", porque o género não marcado, isto é, aquele que se pressupõe geralmente, é o masculino. Por exemplo, com substantivos que tenham o mesmo radical para os dois géneros, por exemplo, gato/gata, acontece usar-se apenas o masculino quando queremos designar a espécie: falamos de um gato e não de uma gata.

No caso de avós, a intuição da língua actual levar-nos-ia a aceitar a observação do consulente. Mas historicamente os factos são outros: o "machismo" impõe-se, porque avós é a evolução do plural *aviŏlos, que em latim vulgar é o plural de aviŏlu, «avô». Sem entrar em grandes pormenores, diga-se que a relação fonética histórica entre o singular avô, «pai do pai ou da mãe», e o plural avós, «os pais do pai ou da mãe», é semelhante à existente entre novo e novos: pelo fenómeno de metafonia (assimilação à distância) o -o final do singular, muito fechado, fechou o da penúltima sílaba; no caso de aviŏlu, passou-se a avoo, com três sílabas (a-vo-o), a penúltima das quais com ó fechado, e finalmente, por contracção das duas vogais das duas últimas sílabas, ambas fechadas, chegámos a avô. Contudo, no plural e no feminino, não houve metafonia, e a vogal da penúltima sílaba manteve-se aberta.

A forma avós é também o feminino, que evoluiu de aviŏlas por intermédio da forma medieval e ainda hoje galega avoas. Há portanto duas palavras latinas que convergiram numa única forma, avós. A forma avôs terá aparecido posteriormente, já em português, com base no masculino avô