Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Ao consultar artigos das Ciberdúvidas relativos a «e/ou» [O emprego do e/ou e Conjunções coordenativas e/ou], creio ser pertinente referir o seguinte, em apoio, aliás, da posição do consulente Ricardo Lopes e manifestando que discordo do consulente Ricardo Castro quando refere que «e/ou» tem alguma justificação com as "portas lógicas" usadas nos fluxogramas para programação de computador (esse argumento também serviria para justificar o que manifesto abaixo):

É de notar que a função ou, em termos lógicos, pode existir com dois significados: um inclusivo e outro exclusivo. Exemplos:

1. Inclusivo: «Hoje vou ao teatro ou ao futebol.»

2. Exclusivo: «Hoje, às 21h00, vou ao teatro ou ao futebol.»

Como anotação, note-se ainda a forma exclusiva com duplo ou, com o mesmo funcionamento do exemplo 2 acima patente: «Hoje, ou vou ao teatro, ou vou ao futebol.»

A proposição 1 terá valor lógico verdadeiro se o sujeito for apenas ao teatro, apenas ao futebol ou a ambos no mesmo dia, como se poderá, de resto, determinar perguntando ao sujeito: «Foste ao teatro? Foste ao futebol?» Quer o sujeito responda «Sim, fui ao teatro», «Sim, fui ao futebol», ou «Sim, fui ao teatro e ao futebol», resultará um estado de verdade.

A proposição 2, por outro lado, terá valor lógico verdadeiro se o sujeito for apenas ao teatro ou apenas ao futebol, nunca aos dois destinos.

Mesmo aceitando que nas ocorrências línguísticas a lógica não será de natureza completamente matemática, parece-me redundante, e como tal desnecessário (e para mais parece deselegante, descontínuo, complicado e ...

Resposta:

As atentas observações do consulente e as perguntas e as respostas em causa mostram que a conjunção ou é ambígua: tem dois valores, inclusivo e exclusivo. A sequência e/ou acaba por revelar-se inequívoca, porque evita a ambiguidade de ou, por exemplo, num contexto como o seguinte:

(i) As portas foram pintadas a verde ou a vermelho.

Em (i), são possíveis duas interpretações (cf. John Lyons, Semantics, Cambridge, Cambridge University Press, 1977, pág. 144):

a) inclusiva, quando a frase (i) é sempre verdadeira, tenham as portas sido pintadas só a verde, só a vermelho ou a verde e vermelho simultaneamente;

b) exclusiva, se for verdade que as portas foram pintadas a verde mas não a vermelho ou vice-versa.

Dada a ambiguidade de ou nos planos lógico e semântico, percebe-se que a expressão e/ou se torna mais clara, já que representa apenas o valor inclusivo de ou. Cabe, porém, referir que este ou outros pareceres serão sempre controversos, porque o próprio modelo de e/ou, que é and/or, tanto tem defensores como tem detractores no próprio mundo de língua inglesa. Sem querer e/ou poder ir mais longe, deixo a tradução de algumas linhas de uma página da Internet a propósito dessa controvérsia:

«No seu excelente livro The Language of Judges [= A Língua dos Juízes] (Chicago 1993), Larry Solan (que é linguista e professor de Direito) dedica catorze páginas à "regra do and/or" como é usada no contexto jurídico, assinalando que os comentadores de estatutos que se têm deparado com usos...

Pergunta:

Tento auxiliar um filho que está no 6.º ano e que está a estudar uma obra intitulada Ulisses. Contudo, as minhas memórias sobre recursos expressivos (ou estilísticos?) são vagas. Como classificar:

«O mar que era caminho parecia querer transformar-se em porta que se fechava à sua frente»?

Pretendo também construir-lhe exercícios para fazer em casa, mas gostaria de esclarecer se estes exemplos estão correctos ou não. Em alguns casos, hesito como classificar (ou se poderá mesmo ser classificado). Assim, «E o canto chorava, suavíssimo, violentíssimo» pode servir de exemplo para a metáfora, ou para a antítese?

«Dizem que não ficou pedra sobre pedra» (acerca da destruição de Tróia) — será uma metáfora, ou uma hipérbole (ainda não a estudou)?

«Ulisses uivava para os companheiros: – Parem!» será uma metáfora?

«HOMENS... HOMENS... HOMENS...» pode ser um exemplo de repetição, ou de suspensão da frase?

«Tudo aqui é ciclópico: os animais, as plantas, as pedras...» pode ser um exemplo de enumeração, ou de suspensão da frase?

«Beberam, comeram, ofereceram sacrifícios... Beberam, comeram, dançaram...» pode ser um exemplo de enumeração, ou de repetição expressiva?

Muito obrigada pelo vosso auxílio.

Resposta:

Já se disse várias vezes no Ciberdúvidas que a análise estilística de um texto é também uma questão de interpretação, podendo na mesma expressão ou frase ocorrer duas ou mais figuras de estilo. Farei breves comentários a cada exemplo, que se reportam ao episódio das Sereias:

1. «O mar que era caminho parecia querer transformar-se em porta que se fechava à sua frente»

A sequência «parecia transformar-se em porta...» é uma comparação, visto a identificação entre «mar» e «porta» ser feita explicitamente mediante palavras e expressões comparativas («semelhante a...», «como...», «parece...», etc.). Pode ainda considerar que «o mar que era caminho» é uma metáfora, porque a identificação entre os dois substantivos se faz sem a mediação das referidas construções comparativas.

2. «E o canto chorava, suavíssimo, violentíssimo»

Em «o canto chorava», está implícita a identificação entre o som do canto e o som do choro, pelo que se pode considerar que se trata de uma metáfora. Além disso, também é possível afirmar que a expressão encerra uma personificação, por atribuir características humanas ao canto (não é o canto que chora, são as pessoas que o ouvem). Quanto à sequência «suavíssimo, violentíssimo», mais do que uma antítese (simples contraste entre duas realidades), podemos falar de paradoxo, já que «violentíssimo» parece entrar em contradição com «suavíssimo», embora se compreenda que o canto tinha uma tal sedução que exacerbava o desejo.

3. «Dizem que não ficou pedra sobre pedra»

Pode-se interpretar como hipérbole a expressão «não ficar pedra sobre pedra», que é também corrente em textos não-literários. Dizendo que não se sobrepõe nenhuma pedra, sublinha-se o grau de destruição sugerido.

Pergunta:

Ao tentar fazer uma tradução, surgiu-me uma dúvida acerca de orações subordinadas adverbiais condicionais. É possível usar estas orações para exprimir certezas/regras?

Resposta:

Julgo que a consulente se refere às orações adverbiais condicionais factuais ou reais, como as que ocorrem nos seguintes exemplos:

(1) «Se chove, fico melancólico.»

(2) «Se um perdigueiro é um cão, então também é um mamífero.»

Nas construções de (1) e (2), o conteúdo das orações que as constituem verifica-se no mundo real (cf. M.ª Helena Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, 2003, pág. 706). Note-se que este tipo de construção ocorre em generalizações, como em (2), sendo, portanto, frequente na formulação de leis científicas. Característico é o emprego do presente do indicativo («chove»/«fico», em (1), e «é», em (2); cf. idem, pág. 707).

Pergunta:

O que significa «identificar elementos de estruturação do texto, a nível da componente genológica»?

Resposta:

Significa «identificar elementos da estruturação do texto, do ponto de vista da teoria dos géneros literários». Genologia é um termo que designa a teoria dos géneros literários (ver Marc Augenot, Glossário da Crítica Contemporânea, Lisboa, Editorial Comunicação, 1984); como é óbvio, genológico quer dizer «relativo à genologia».

Pergunta:

Tenho notado que, aqui, no Brasil, as pessoal estão com uma tendência muito acentuada de mudar a regência dos verbos, modificando a sintaxe como na frase: «Ontem fui ao posto médico e vacinei.» E, ainda: «Este ano, na faculdade, reprovei.» Ao meu ver isso estaria certo se as pessoas tivessem praticado tais atos em outras. Acho que tais verbos exigem, para total clareza, uma conjugação pronominal («me vacinei») ou com o verbo auxiliar («fui reprovado») — Tal fato está acontecendo até nas camadas sociais mais esclarecidas e com muitos outros verbos. «Emprestei» — no sentido de ter tomado dinheiro em empréstimo — e assim por diante. Poderiam dar-me alguma luz sobre o assunto?

Resposta:

O consulente foca três casos diferentes de uso linguístico que são sinal de variação não admitida pela norma.

1. "Vacinei"= vacinar-se

Na norma, o verbo é transitivo («vacinar alguém») ou  pronominal («vacinar-se»); o verbo deixa de ser usado reflexivamente, um pouco como o uso brasileiro de esquecer-se de («esquece de si mesma», cf. Dicionário Houaiss).

2. "Reprovei": fui reprovado

O verbo é transitivo («reprovar alguém») e tem sentido a{#c|}tivo, mas os falantes (mesmo os portugueses) usam-no na voz activa com valor passivo; parece que a sintaxe do verbo se alterou por analogia com passar na acepção de «passar de ano, ser aprovado»: assim como «se passa (num curso)», também se «"reprova" (num curso)».

3. "Emprestei" = pedi emprestado/tomei de empréstimo

Trata-se de uma confusão ou perda de oposição entre emprestar («ceder temporariamente») e «pedir emprestado». Este uso está descrito como brasileirismo no Dicionário Houaiss. Talvez se deva ao facto de não existir uma unidade lexical simples com o significado de «pedir emprestado». Mas é frequente de neutralização entre itens lexicais que estabelecem uma relação de antonímia conversa (comprar/vender, aprender/ensinar). Por exemplo, em francês, o contraste entre apprendre e