Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Fiz, há dias, a seguinte pergunta: «Como se pronuncia a palavra blister? Tem acento grave ou agudo?» Penso que a pergunta estará identificada pelo n.º 25 587 e foi respondida por Carlos Rocha.

Fiquei, porém, algo decepcionado com a resposta, que não correspondeu às minhas dúvidas.

Em primeiro lugar, argumenta-se que é uma palavra inglesa. Porém, como se argumenta na resposta, da vossa responsabilidade, à pergunta 15 205, «O “blister” é muito utilizado na indústria farmacêutica, para acondicionar os comprimidos, as drageias ou as cápsulas.» E não me recordo da sua utilização entre aspas, pelo que ela já está efectivamente a ser aportuguesada. Ou seja: a palavra é de uso frequente, mesmo que ainda não esteja no dicionário da academia, pelo que interessa saber pronunciá-la.

De seguida, argumenta-se com a pronúncia constante do Dicionário Houaiss, de origem brasileira. Ora, segundo sei, esse dicionário é muito conceituado, mas não terá uma tendência para a pronúncia brasileira? Que tantas vezes difere da portuguesa?

Por estas razões, reformulo a minha pergunta: caso a palavra blister já esteja (ou venha a ser) aportuguesada, como se pronunciaria? Não seria mais natural que tivesse acento tónico agudo, à imagem de clister, mister ou Almoster?

Resposta:

A pergunta inicialmente feita pressupunha a existência de um aportuguesamento gráfico do termo blister. Nesta conformidade, a resposta visou esclarecer precisamente este ponto: ainda não há grafia portuguesa consagrada, pelo menos, nos dicionários consultados, havendo um deles, o Dicionário Houaiss na versão brasileira, que regist{#|r}a o termo na grafia inglesa com transcrição fonética da pronúncia em inglês (não há, portanto, tendência brasileira nessa transcrição).

Seja como for, e uma vez que se trata de uma palavra corrente, a adaptação gráfica terá de ter em conta uma outra adaptação, a da pronúncia inglesa à pronúncia portuguesa. Sendo assim, calculo que em português europeu haja duas pronúncias possíveis:

a) a que mantém o acento t{#ó|ô}nico na primeira sílaba: [´bliʃtɛr];

b) a que desloca o acento para a segunda sílaba: [bliʃ´tɛr].

A grafia para a opção a) será "blíster", sequência que é possível em português, até porque já existe líder, também de origem inglesa (de leader). Se a opção for b), então concordo com o consulente: a forma será "blister", palavra aguda como mulher ou Almoster.

Em conclusão, a pronúncia portuguesa de blister não parece estável. Será preciso primeiro que os dicionários a fixem, para depois definirem a grafia mais adequada.

Pergunta:

A minha dúvida tem que ver com uma questão que gerou alguma confusão e não menos ignorância.

Aplica-se ninfomaníaca (ninfomania) às mulheres. E aos homens? Satiromaníaco (satiríase)?

Bem hajam pela página ao serviço da língua e de quem dela quer sentir-se menos distante.

Resposta:

O Dicionário Houaiss define satiríase como «desejo sexual excessivamente forte nos homens» e como sinónimo de satirismo, satiromania e ginecomania. O mesmo dicionário regista ginecomaníaco e ginecómano como o indivíduo que padece de ginecomania; do mesmo modo, é também possível derivar substantivos e adjectivos relacionados com os substantivos que incluem o radical satir-, a saber: satiríaco, satirista e satirómano. Da série destes três termos, excluiria satirista, porque é sinónimo de satírico («relativo à satira»; «que escreve sátiras»). Sobram, portanto, satiríaco e satirómano, que, juntamente com o referido ginecómano, são todos termos que se aplicam a uma patologia do desejo sexual masculino.

Pergunta:

A propósito da polémica levantada na opinião pública por ter sido visto a fumar no avião que o transportava na sua viagem oficial à Venezuela, o senhor primeiro-ministro José Sócrates proferiu os seguintes enunciados que transcrevo, do jornal Público do dia 15 de Maio desse ano: «Tenho o convencimento que se podia fumar»; «estava convencido que não estava a violar nenhuma lei»; «Tenho agora consciência que os fumadores inconscientemente podem violar normas e regulamentos.» Em minha opinião, os três enunciados enfermam de erros de construção, por omissão da preposição de antes da conjunção subordinativa substantiva que, por as estruturas «ter conhecimento», «ter consciência», «estar convencido» e outras similares regerem essa preposição como, por exemplo, «chegar à conclusão». Com efeito, ter conhecimento, ter consciência, estar convencido, chegar à conclusão serão, em minha opinião, ter conhecimento, ter consciência, estar convencido, chegar à conclusão de algo, por isso o emprego da preposição de antes de que. São muito frequentes estas ocorrências mesmo em escritores de nomeada, para não falar nos média e nas intervenções públicas dos diversos agentes sociais, que me parecem incorrectas. Estarei errado? Agradecia o vosso comentário esclarecedor sobre esta questão.

Resposta:

Considera-se que a supressão da preposição de, que introduz um complemento de verbo, substantivo ou adjectivo participial, não é um erro tão grave como a sua adição. Assim, aceita-se melhor (1) do que (2), como se mostra a seguir (o ? indica aceitabiidade duvidosa, e o *, agramaticalidade):

(1) ?«Convenci-me que tinha deixado recado.»

(2) *«Penso de que deixei recado.»

João Andrade Peres e Telmo Móia (Áreas Críticas da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, 2003, pág. 111) comentam a supressão do que chamam preposições argumentais deste modo:

«O tipo de supressão de preposições argumentais [geralmente de] [...] corresponde a um fenómeno bastante difundido [..], que muitos dicionários e gramáticas registam, que encontramos em muitos dos nossos melhores autores e que aprece ser aceite por grande parte dos falantes. Assim sendo, e dado que o nosso principal critério para ajuizar da gramaticalidade de uma estrutura é precisamente a sua aceitação por parte dos falantes, não consideramos as estuturas em causa malformadas ou agramaticais, embora prefiramos aquelas em que não houve supressão.»

Os mesmo autores observam ainda: «Entre os verbos que mais favorecem a supressão conta-se gostar.» (pág. 113).

Em casos de adição de preposição Peres e Móia são peremptórios (pág. 139):

«[...] o verbo unário constar1 [...] é obrigatoriamente não presposcioado:

(480) Consta que vai haver alguns despedimentos na empresa.
(481) *Consta de que vai haver alguns despedimentos na empresa.
(482) Consta isso.
(483) *Consta disso.»

Pergunta:

Grata ficaria pelo favor de me esclarecerem se as expressões seguintes, que ouço e leio frequentemente, são correctas:

«Não me pareceu.» «Não nos pareceu.»

Pareceu corresponde à terceira pessoa do singular do pretérito perfeito de parecer. Ora, isto colide, quanto a mim, com me e nos, primeira pessoa do singular e primeira pessoa do plural, respectivamente.

Se o meu raciocínio estiver certo, quais os equivalentes gramaticalmente correctos?

Já agora; «por favor <noreply@ciberduvidas.pt> <whe-ld2b@kaspop.com> » não é mais um estrangeirismo, desta feita, um espanholismo?

O vernáculo não será «se faz favor», que até é mais bonito e elegante?

Reitero os meus agradecimentos.

Resposta:

O verbo parecer é um verbo que se constrói com um sujeito e um predicativo do sujeito, segundo o esquema «alguém parece alguma coisa»:

(1) «O João parece feliz

Também se usa com uma oração subordinada substantiva que tem a função de complemento direto:1

(2) «Parece que o João está feliz

Esta oração pode ter o verbo no infinitivo:

(3) «O João parece estar feliz

Em todos os exemplos, é possível juntar um complemento que designa a pessoa ou pessoas a quem alguma coisa ou alguma situação parece:

(4) «O João parece-me/nos feliz.»
(5) «Parece-me/nos que o João está feliz.»
(6) «O João parece-me/nos estar feliz.»

 

Em (4), (5) e (6), não há nenhuma incorrecção, porque o verbo parecer concorda com a expressão «o João» em (4) e (6) e é impessoal em (5), o que significa que se usa na 3.ª pessoa. Por outras palavras, os pronomes «-me» e «-nos» não são sujeitos e, por conseguinte, o verbo não tem de concordar com eles. Acresce que a estes pronomes raramente é atribuída a função sintáctca de sujeito.

 

Em relação a «por favor», é expressão usada no português do Brasil e também em Portugal, país onde entra em alternâ...

Pergunta:

Sempre ouvi dizer que um idiota era um indivíduo que tinha muitas ideias.

No entanto, consultando vários dicionários, não há um que tenha essa acepção.

Terá sido um significado que se lhe deu na linguagem popular mas que nunca foi dicionarizado, ou terá sido dicionarizado mas com o passar dos anos se desvaneceu?

Aproveitando, faço também uma pergunta sobre a palavra estonar. Esta significa «tirar a tona a; descascar, etc». Qual a explicação que se encontra para a palavra se escrever dessa forma, e não "destonar"?

Resposta:

1. Etimologicamente, um idiota não é um indivíduo que tem muitas ideias. Com efeito, idiota relaciona-se com o grego ídios,a ou os,on, «próprio, particular, peculiar», «que ocorre em vocábulos introduzidos na língua desde o s[éculo] XV» (Dicionário Houaiss). Ideia, por seu lado, vem do grego «[...] idéa,as 'aspecto exterior, aparência, forma, maneira de ser, princípio geral que serve de base para uma classificação, donde, classe, forma ideal concebível pelo pensamento, donde, concepção abstrata, figura de estilo'» (idem); esta palavra grega formou-se a partir de  eîdos,eos-ous, «aspecto exterior, forma, aparência; forma mental, idéia, conceito; classe, gênero; maneira, modo, método» (idem).

Concluindo, a expressão «idiota é alguém que tem muitas ideias» releva mais de uma etimologia popular pouco fundada, que procura motivar historicamente um certo grau de convergência semântica entre idiota e ideia. Acresce a crença popular segundo a qual pensar muito (entenda-se «ter ou relacionar ideias») pode constituir um risco para a saúde mental, alienando-as e tornando-as ensimesmadas — o mesmo é dizer: etimologicamente idiotas.

2. Es- pode ser uma forma alternativa a des-, como esclarece o Dicionário Houaiss: «es- equivale ao pref. des- (ver): escabelado/descabelado, esfazer/desfazer, esperdiçar/desperdiçar». O mesmo dicionário adverte que «[...] freqüentemente, es- é um falso pref., resultante da prótese de um e- em voc. gregos (esfíncter, esfragístico, esfacelo etc.), lat. (escama, escrever, escrutínio, espelho...