Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Sobre a lenda gaúcha, o correto é «Negrinho do Pastoreio», ou do «Pastoreiro»?

Resposta:

A forma correcta desse nome é «Negrinho do Pastoreio» ou «Negrinho do Pastorejo». Trata-se de uma locução nominal registada pelo Dicionário Houaiss como regionalismo do Rio Grande do Sul e que designa «[um] ser imaginário que protege e ajuda pessoas do campo, esp[ecialmente] crianças, na busca de algo que foi perdido]». As expressões «Crioulinho (ou Crioulo) do Pastoreio» ou «do Pastorejo» têm uso equivalente. Em todas estas designações, usam-se maiúsculas iniciais quando se refere a personagem em apreço como protagonista da lenda que a popularizou.

Diz-se «do pastoreio» ou «do pastorejo», porque a principal ocupação desta figura lendária era o pastoreio ou pastorejo, «ofício de pastor» (ibidem).

Pergunta:

Na questão «É correcto o entendimento de que a garrafa está cheia?», a palavra entendimento deve ser seguida de de que ou de que?

Porquê?

Resposta:

A palavra entendimento tem de ser seguida por «de que», porque de é a preposição que introduz o seu complemento, seja este uma expressão nominal ou uma oração:

1) o entendimento do estado da garrafa;

2) o entendimento de que a garrafa está cheia;

3) o entendimento de a garrafa estar cheia.

Em 1), temos um complemento realizado por uma expressão nominal, enquanto, em 2) e 3), temos, respectivamente, uma oração finita e uma oração de infinitivo (não-finita).

Contudo, vale a pena lembrar que, com substantivos que têm regência, a omissão da preposição antes de uma oração finita é muito frequente e até aceitável (cf. João Andrade Peres e Telmo Móia, Áreas Críticas da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, 1995, págs.122/127). Mesmo assim, do ponto de vista da estrita observância da norma, recomenda-se sempre a presença da preposição nesse contexto.

Pergunta:

Gostaria de vos colocar a seguinte questão: o verbo envidar é transitivo, logo, não prescinde de complementos directo e indirecto; resta saber se é um verbo cativo de um complemento fixo, o que se traduz numa expressão idiomática, ou seja, «envidar esforços»; para concluir, é legítimo utilizar outros sintagmas, tais como, «envidar os meus cuidados», «envidar o meu desprezo», etc.?

Agradecido, desde já, pelo envide dos vossos esforços na solução das nossas dúvidas.

Resposta:

No uso mais corrente, com o sentido de «empregar», «aplicar», é verdade que o verbo envidar quase se usa só com «esforços» e a expressão «todos os esforços». Mas os dicionários atestam outras palavras a preencher o núcleo da expressão que realiza o seu complemento directo; por exemplo:

«Envidou os recursos necessários para atingir seu objectivo» (Dicionário Houaiss);

«O examinando deverá envidar a sua ciência para a resolução de problemas» (Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses, dir. de João Malaca Casteleiro, Lisboa, Texto Editora, 2007);

«Teriam de envidar muitas horas para resolver o conflito» (ibidem).

Pode, portanto, dizer «envidar os meus cuidados/o meu desprezo», desde que com isso queira dizer «empregar/aplicar os meus cuidados/o meu desprezo».

Pergunta:

Ao traduzir uma fábula de Esopo, para o termo «one-eyed doe» (corça de um olho só), tentei aplicar o termo "caolha". Mas não encontrei nos meus dicionários (Houaiss, Mirador ou on-line), apenas a referência ao masculino caolho. Há uma obra, de Júlia Campos, A Caolha. Por gentileza, é possível usar o feminino de caolho?

Abraços e antecipados agradecimentos.

Resposta:

Pode. Se o nome em causa tem um masculino que exibe o sufixo de género -o), normalmente, é possível substituí-lo pelo sufixo -a. Não é verdade que a zarolho corresponde zarolha

Contudo, tendo em conta que caolho é um híbrido formado do quimbundo ka, «pequeno», e do português olho (cf. Dicionário Houaiss), pode perguntar-se se a palavra é analisável como uma palavra composta, à maneira de de «corça cor de vinho». Mas a verdade é que há atestações do feminino caolha; por exemplo (Dicionário de Usos do Português Contemporâneo, de Francisco Borba):

«– A moça é bonita?

«– Serve. Só que é meio caolha, meu Major [...].»

Mesmo que haja razões morfológicas que possam apoiar o uso de caolho como adjectivo uniforme, o certo é que o próprio uso consagra o feminino caolha.

Pergunta:

Existe alguma palavra portuguesa que signifique o mesmo que a palavra inglesa machicolation?

Agradecido pelo tempo dispensado.

Resposta:

Existe: é o termo mata-cães.

O termo inglês machicolation significa «abertura no chão entre as mísulas que sustentam as ameias, através das quais se podia atirar pedras aos atacantes que se encontravam na base da muralha defensiva» (ver artigo em inglês da Wikipédia). Se assim é, então mata-cães parece ser mesmo o termo português equivalente quando o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa o define como «plataforma saliente, existente em castelos ou sobre as antigas portas das cidades, com aberturas donde se lançavam pedras ou outros materiais para evitar a aproximação do inimigo».