Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Estava estudando as influências africanas na formação de nosso idioma e fiquei em dúvida ao ler em um livro que houve a criação de um s prostético na ligação de frases com em «os olhos» = "zóios", «vamos embora» = "simbora". Em geral entendi o efeito do s prostético, mas gostaria de saber com mais clareza o que este termo, prostético, significa.

Obrigada.

Resposta:

Um som prostético ou protético é um som que se acrescenta em começo de palavra. Nos casos em apreço, são os sons sibilantes ([z] e [s]) que passam a ser interpretados como sendo começo das palavras em questão.

Note-se que, tendo em conta que «vamos embora» se costuma pronunciar como "vamo[z] embora", o mais certo é que o som protético em embora seja também z como em "zóios": "zimbora".

Pergunta:

Gostaria de perguntar se a expressão «tenho dito» utilizada para expressar a conclusão de uma fala ou frase é correcta. Não será mais apropriado «tenho-o dito»? Isto porque me parece um decalque da expressão castelhana «lo he dicho» e porque faz mais sentido com artigo, referindo-se ao objecto em questão, ou seja, à fala/frase que se acabou de dizer.

Obrigado desde já pela resposta e por me ajudarem tanto no meu trabalho.

Resposta:

A expressão «tenho dito» está correcta, porque assim se fixou. Não precisa de complemento directo explícito («tenho-o dito», em vez de «tenho dito»), nem mesmo sob a forma do pronome complemento o (não é artigo) porque, ao contrário do espanhol, o português permite a omissão do complemento directo (complemento nulo), quando se usa um verbo transitivo.

Na Gramática da Língua Portuguesa, de M.ª Helena Mira Mateus et al. (Lisboa, Editorial caminho, 2003, pág. 886/887), descreve-se esta particularidade do português:

«O português admite mais generalizadamente do que outras línguas românicas complementos nulos dos verbos, em particular exibe objecto nulo [...]:

(12) O pedro comprou dois livros à filha e ofereceu [-] à filha.»

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem sobre a forma correcta da palavra Serengeti em português. "Serengeti", ou "Serengueti"?

Obrigada!

Resposta:

Pode usar Serengeti ou o aportuguesamento não dicionarizado Serengueti. Serengeti é a designação de um parque nacional da Tanzânia, famoso pela sua vida selvagem. É, ao que parece1, a anglicização de Serengit, «planícies sem fim».

1 A informação é da Wikipédia (artigo sobre Serengeti).

Pergunta:

Porquê a expressão «humor de cão»? Não consigo encontrar em lado nenhum a explicação para esta expressão. Significando «mau humor», o que a originou, se os cães não têm habitualmente mau humor, a não ser que alguém os aborreça bastante?

Resposta:

Não encontro dicionarizada a expressão e, por isso, não tenho elementos seguros ou mais autorizados sobre a sua origem. Sei é que existem outras expressões que incluem a palavra cão para intensificar um estado que pode ser visto negativamente. Diz-se, por exemplo, «fome de cão» (equivalente a «fome de lobo», «apetite extremo») e «está frio como um cão»1 ou «trabalhei como/que nem um cão»2. Assim, atrevo-me a propor que «humor de cão» surgiu na confluência destas locuções: a estrutura sintáctica é a de «fome de cão», e o valor disfórico (negativo) remete para «trabalhar como um cão».

1 Também se diz «está frio que nem um burro». No Brasil diz-se «pra burro» e «pra cachorro», que acaba por retomar o motivo do cão como processo de intensificação.

2 Afonso Praça, no seu Novo Dicionário do Calão (Lisboa, Casa das Letras, 2001), não conseguia explicar este uso: «O vocábulo cão aparece em expressões cujo significado nos escapa. Estão neste caso estudar como cão = estudar muito; trabalhar como um cão = trabalhar muito).»

Pergunta:

Tenho ouvido frequentemente a palavra tramitação, sendo o a na primeira sílaba pronunciado com um som nasal. Isso está correto?

Resposta:

A norma brasileira não condena essa pronúncia, porque no português brasileiro existe uma tendência generalizada para nasalar os aa que precedem m, nn ou nh (consoantes nasais). Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2002, pág. 76) refere-se a este fenómeno:

«[...] soam muitas vezes como nasais as vogais seguidas de m, n e principalmente nh: cama, cana, banha, cena, fina, Antônio, unha.»1

Deve, portanto, aceitar-se que tramitação soe "trãmitação" no português brasileiro.

1 Em começo de palavra, a vogal representada pela letra e não nasaliza antes de consoante nasal: «[...] Sem nasalidade proferem-se as vogais desses e de vários outros vocábulos: emitir, emissário, eminente, energia, enaltecer, Enaldo, etc.» (ibidem).