Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber se o verbo ligar (entenda-se «ligar telefonicamente/telefonar») se conjuga «Vou ligar com», ou «Vou ligar a/para».

Agradeço a atenção.

Resposta:

No sentido de «telefonar», não se aceita «ligar com», mas aceita-se «ligar a/para». Neste caso, ambas as preposições estão certas, mas dos respectivos usos decorrem significados diferentes. Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, diz-se ligar a e ligar para; as abonações sugerem que se usa a preposição a antes de nome que denote pessoa e para antes de designação de lugar:

1) «Ligou para casa do João.»
2) «Ligo-te à noite.»

Destes exemplos e da intuição do emprego do verbo ligar, conclui-se que a preposição a ocorre com substantivo que nomeie pessoa, e para aparece junto de substantivo que designa lugar ou número de telefone («ligar para a casa/para o número do João»)

Note-se, contudo, que certas expressões nominais podem apresentar-se quer como lugares quer como entidades equivalentes a pessoas (por exemplo, instituições, oraganismos, departamentos); por exemplo:

3) «Vou ligar à/para a Santa Casa da Misericórdia.»

Em 3), se ligo à Santa Casa, falo com alguém que a representa ou que aí trabalha; se ligo para a Santa Casa, refiro-me ao lugar que é identificado por um certo número de telefone e que possui este equipamento.

A preposição para também figura ao pé de nomes de pessoa, desde que estes sejam interpretados como elipses, em «ligar para o João» se entende como «ligar para casa/o número do João».

Levantam-se, portanto, restrições a frases como (o ? indica inaceitabilidade):

5) ?«Vou ligar a/à casa do João.»

Pergunta:

Gostaria de saber se a forma optado do verbo optar poderá ser usada como adjectivo. Ou apenas se considera adjectivo opcional.

Obrigada.

Resposta:

É melhor usar opcional do que optado. O verbo optar tem regência, uma vez que selecciona um complemento preposicionado: «optei pela disciplina de Latim» (= «preferi/escolhi a disciplina de Latim»). Como estes verbos com regência mostram geralmente incompatibilidade com voz passiva (não se aceita *«a disciplina de Latim foi optada por mim»), é, no mínimo, estranho que se diga «a disciplina por mim optada» ou «a disciplina optada», dando ao particípio optado um valor adjectival. Por conseguinte, use «disciplina opcional», se se tratar de «disciplina que está à escolha», e «disciplina escolhida», se for «disciplina que se escolheu, se seleccionou ou por que se optou».

Pergunta:

Relativamente a «posse ilegal de arma», tenho uma questão quanto à sua resposta à dúvida anterior, pois considero que tanto a posse é ilegal, como a própria arma é ilegal. Não existe posse legal de armas ilegais e, portanto, parece-me que as duas opções colocadas pelo comentário anterior estão correctas. Serei eu que estou enganada?

Resposta:

O conceito de posse pode trocar as voltas do raciocínio da consulente.

Vejamos o seguinte:

a) as armas podem ser legais ou ilegais;

b) a posse pode ser legal ou ilegal.

Admitindo a outra formulação que não a de «posse ilegal de arma», isto é, «posse de arma ilegal», é possível detectar ambiguidade nesta expressão:

a) ilegal modifica o núcleo «posse» da expressão «posse de arma» e é o mesmo que «posse ilegal de arma»;

b) é a palavra arma que é modificada por ilegal, pelo que a expressão significa «posse de uma arma que é ilegal».

Em princípio, a expressão costuma ser «posse ilegal de arma» e não «posse de arma ilegal», porque a situação mais em foco para as autoridades e para a comunicação social é a de uso não permitido de armas. Com efeito, nas nossas sociedades, a posse é que costuma ser ilegal, porque a acção policial se exerce normalmente sobre posse ou uso de arma, sem a necessária licença de porte de arma.

Contudo, noutro contexto, por exemplo, militar, pode acontecer que um país viole convenções internacionais que identificam certas armas como nefastas para a humanidade: nesse caso, esse país encontra-se na posse de armas ilegais, o que se traduz paradoxalmente por uma situação de legalidade interna (pode-se argumentar as armas são usadas para a segurança nacional), mas de ilegalidade no plano internacional (a posse dessas armas não é aceite por outros países). Outra situação possível é a de as autoridades apreenderem armas ilegais a certos grupos de indivíduos que agem ilegalmente. Também aqui temos o caso paradoxal de as autoridades se encontrem na posse de armas por definição ilegais;...

Pergunta:

Encontro-me a redigir um relatório de estágio baseado na produção de castanha. Surgiu-me uma dúvida quanto ao adjectivo referente à castanha, como por exemplo «produção apícola» para o mel, ou «produção frutícola».

Já encontrei em vários sítios, escritos por professores universitários, as formas "castanhícola" e "castaneícola". No entanto, nos dicionários que consultei, nenhuma das formas aparece.

Gostaria que me esclarecessem sobre qual delas é a correcta, ou, porventura, se tal vocábulo não existe na língua portuguesa.

Desde já, muito obrigado e parabéns pelo trabalho!

Resposta:

Os termos que encontrou «em vários sítios» não aparecem nos dicionários consultados, nos quais  adjectivo referente a castanhas é castanhoso. Regista-o, por exemplo, o Dicionário da Língua Portuguesa 2008, da Porto Editora, e quer dizer «que tem castanhas ou castanhais».

Contudo, o sufixo átono -cola é actualmente produtivo e pode aparecer associado com palavras de diferentes origens, como comenta o Dicionário Houaiss:

«[-cola] pospositivo, do eruditismo lat[ino] –cola, do v[erbo] lat[ino] colo,is,ŭi,cultum,ĕre, 'cultivar, cuidar; habitar; tratar bem; prosperar algo'; o padrão lat[ino] aparece em port[uguês] no Renascimento e vem-se divulgando, sobretudo a partir do sXIX, já com antepositivos cultos lat[inos], já gr[egos], já de outras orig[ens], inclusive vern[áculos], caso em que sua qualidade internacional fica comprometida (p. ex., batatícola/bataticultor/bataticultura, de 1988) [...].»

Parece, portanto, que há uma certa margem de liberdade na construção de termos sufixados com -cola. Apesar disso, diremos que a forma castanhícola, «relativo à produção de castanha», é aceitável, mas mais consistente do ponto de vista etimológico é castaneícola, porque vai buscar castene-, radical da forma latina castanea, origem do português castanha, juntando-lhe a vogal de ligação -i-. A sequência -eícola é possível, como se pode ver pelo caso de oleícola, formado por ole-, radical de oleum, «azeite», pela vogal de ligação -i- e pelo sufixo -cola.

De qualquer modo, estamos perante neologismos de uso...

Pergunta:

Gostaria de saber se há alguma expressão correspondente a «Catch the wheel that breaks a butterfly» em português. A expressão inglesa refere-se a dedicar um esforço extremo ou exagerado a algo insignificante ou inútil. Wheel, nesta expressão, refere-se à antiga forma de tortura onde se partiam os ossos da vítima com um ferro, com esta amarrada a uma roda.

Resposta:

A expressão em causa faz parte da letra da peça intitulada Falling Down, escrita por Noel Gallagher, membro do grupo musical Oasis. A frase faz alusão a uma outra, «who breaks a butterfly upon a wheel?», da autoria do poeta inglês Alexander Pope (1688-1744) e que significa literalmente «quem parte uma borboleta sobre a roda de tortura?». Esta expressão aplica-se realmente a uma situação em que os meios, o esforço ou o empenho redundaram num resultado pouco importante. 

Não vejo o exacto equivalente desta expressão em português, mas sugiro a frase «a montanha pariu um rato», que é uma elaboração de «parto da montanha», expressão registada e comentada por Guilherme Augusto Simões, no seu Dicionário de Expressões Populares Portuguesas (Lisboa, Edições D. Quixote, 1993):1

«Parto da montanha – Tudo quanto motiva uma decepção no resultado final quando se aguardam grandes êxitos (relativo à célebre frase latina "parturiunt montes; nascetur ridicul[u]s mus" – a montanha pariu um rato; mas a frase latina mais conhecida sobre o mesmo assunto é "mons parturiens".»

Esta não é certamente a melhor tradução da expressão inglesa. Deixo, portanto, ao consulente a criativa e espinhosa tarefa de encontrar a expressão portuguesa que melhor se adapte à mensagem do poema.

1 Um consulente (José Afonso, Angra do Heroísmo, Açores) sugere outra express...