Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

No livro Miscelânea, capítulo 16, de Miguel Leitão de Andrada, encontramos uma lenda sobre a fundação da vila da Lousã (Portugal), no qual aparecem os nomes rei Arunce e princesa Peralta; e Arouce e Arauz (?) (castelo, povoação, rio). Qual a origem desses antropônimos e topônimos?

Desde já, os meus agradecimentos.

Resposta:

Baseio-me no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa de José Pedro Machado:

1. Arunce

Nada consta na fonte consultada, mas tem semelhança com Arunca, «rio da Estremadura , [que] nasce em Santiães, atravessa Pombal e aflui ao rio Anços. Machado considera que Arunca é «nome pré-céltico, composto de ar, "rio", "água", e -unca, suf[ixo] dimin[utivo]». Observe-se que, de qualquer modo, o rio Arunca se encontra alguns quilómetros a sul da serra da Lousã, o que sugere que Arunce é nome com outra história, mesmo que tenha afinidades etimológicas com aquele hidrónimo.

2. Arouce e Arauz

A forma "Arauz", atestada num documento do séc. X, é variante medieval de Arouce, nome de de «ribeira que nasce na serra da Lousã e entra na margem direita do Seira». Para Machado, «tal como Arouca (a que talvez esteja ligado), tem etimologia obscura, talvez céltica».

3. Peralta

É nome de povoações bastante mais a sul da serra da Lousã, concretamente, em Alenquer e na Lourinhã. Como apelido pode ter origem num topónimo de Navarra (Espanha), formado por pêra (forma arcaica de pedra) e alta. Os topónimos portugueses assim chamados provêm ou do mencionado apelido1 ou de expressão idêntica à navarresa. Note-se, aliás, que Peralta está na base da uma etimologia popular do topónimo Castanheira de Pêra (um pouco mais a sul da Lousã), acerca do qual se diz derivar ...

Pergunta:

É só para saber qual a forma verbal correspondente ao nome bondade. O adjectivo é bondoso, mas não consigo encontrar a forma verbal. Será que existe?

Resposta:

Não existe, de facto. Há verbos que parecem corresponder a bondade e bondoso, mas trata-se ou de uma relação etimológica indirecta (abondar, «bastar») ou mera semelhança fónica [bonderizar, «revestir (produtos ferrosos, aço) com uma camada de solução fosfatada antiferrugem, geralmente associada a uma tinta, esmalte ou afim», Dicionário Houaiss].

Pergunta:

Pretendia saber da legitimidade do uso de "êntase" no seguinte texto: «A intenção fundamental das principais correntes místicas orientais não é sair de si mesmo para se unir a um Outro por amor — êxtase —, mas antes descer às profundidades do seu ser para aí descobrir que a sua verdadeira identidade une-se à do Último — êntase.» Se me puderem dar esse esclarecimento, fico-lhes grato.

Adianto que, entretanto, vasculhei a Internet e encontrei este termo aplicado a determinado tipo de meditação mística (interiorização profunda!). Digam-me o que lhes parece sobre isto. Poderá ser considerado um neologismo ou um termo do glossário religioso!?

Resposta:

Existe o termo êntase (cf. Dicionário Houaiss e Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Porto Editora) como termo da arquitectura, com o significado de «engrossamento da parte central do fuste de uma coluna grega, para que esta pareça reta, visando à correção da ilusão óptica de concavidade produzida por fuste perfeitamente cilíndrico» (Dicionário Houaiss). Esta palavra tem origem no grego éntasis, «grossura ou alargamento no meio de uma coluna»,  e surgiu em português por intermédio da forma latina entăsis, is.1

Contudo, o contexto e o significado apresentados levam-me a crer que estamos na presença de um homónimo, hipótese que é confirmada por Plinio Prioreschi, na obra A History of Human Responses to Death: mythologies, rituals and ethics (Edwin Mellen Press, pág. 162):

«In his classical study of Yoga, Mircea Eliade uses the suggestive term entasis to describe the state of samadhi. Entasis is to be contrasted with extasis, meaning literally to stand outside oneself. To be in a state of ecstasy is to be transported into another mode of existence; to be in entasis, or samadhi, is to abandon all transport and all alternative modes of existence, and merely stand with perfect stillness inside oneself.»

Tradução minha: «No seu estudo clássico sobre o ioga, Mircea Eliade usa o termo sugestivo entasis para descrever o estado de samadhi. Deve contrastar-se a entasis com o êxtase, o qual significa literalmente "ficar fora de si". Estar em êxtase é ser transportado para outro modo de existência; estar em entasis, ou samadhi, é abandonar todo ...

Pergunta:

Pergunto: segundo a norma de pronúncia-padrão, pronunciam-se as consoantes c-p-c (que estão seguidas de outra consoante) nas palavras em epígrafe? Em caso afirmativo, segundo o Novo Acordo, vão manter-se, não é verdade? E se houver pessoas que sempre pronunciaram "dição", "perentório", é erro escreverem como as pronunciam, ou podem considerar-se correctas as duas grafias?

Resposta:

Em português europeu, tudo depende do que se considera o padrão de pronúncia de cada uma das palavras apontadas. Isto significa que certas pronúncias ficarão excluídas da nova ortografia, mesmo que em Portugal elas possam ser significativas ao nível de certos grupos sociais ou de certos falares regionais que não constituem a base da norma europeia.

Consultando o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa (DLPC), e o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora (GDLP), verifica-se que há certa convergência na transcrição da pronúncia-padrão das palavras em referência1

olfacto: [ɔɫ`faktu] (DLPC), [ɔɫ`fatu] (GDLP

peremptório: [pɨɾẽ`tɔɾju] (DLPC), [pəɾẽ`tɔɾju] (GDLP

dicção: [di`ksãw] (DLPC), [di`ksãw] (GDLP

carácter: [kɐ`ɾaktɛɾ] (DLPC), [kɐ`ɾa(k)tɛɾ] (GDLP

caracteres: [kɐɾɐ`tɛɾɨʃ] (DLPC)

Note-se, contudo, que os dicionários em referência divergem quanto à pronúncia de olfacto. Além disso, mostram-se hesitantes relativamente a carácter: no

Pergunta:

Talvez sejam muito populares e coloquiais as interjeições foda-se!, porra! e caralho!. Mas, por serem vulgares, se calhar as pessoas preferem evitá-las. O uso de carago! não seria uma tentativa de expressar impaciência sem ser vulgar? Então, vejamos, para exprimir impaciência, eu poderia usar caramba!, hum! e ora! tranquilamente, sem medo de estar falando mal? Em relação a fónix!, uxte!, pardês!, caraças! e arre! não sei o que pensar. Não consigo orientar-me. E, mesmo que pudesse consultar a definição destas palavras em muitos dicionários, ficaria cheia de dúvidas relativamente ao uso das mesmas. São muito ou pouco usadas? Ouvem-se na rua, nas telenovelas, dentro de casa? Ouviam-se mais antes que actualmente? Às quais devo dar preferência? Um nativo usa todas estas palavras no seu dia-a-dia? Se calhar há outras mais apropriadas para traduzir tal sentimento.

Muitíssimo obrigada por vossa preciosa ajuda!

Resposta:

Limito-me às interjeições referidas na pergunta, sem ter a veleidade de ser rigoroso, porque não conheço estudos que permitam perceber melhor qual a distribuição de cada uma delas em diferentes registos linguísticos. Direi apenas que há várias distinções a fazer, primeiro, entre interjeições em uso e interjeições em desuso ou arcaicas (uxte! pardês!).1 Depois, no conjunto das interjeições em uso, encontram-se interjeições francamente grosseiras (caralho! foda-se! ); as que o são menos mas ainda assim pouco recomendáveis num discurso mais polido (caraças! fónix! porra!); as toleradas num contexto familiar ou de amigos sem soarem vulgares ou ordinárias (caramba!); as perfeitamente anódinas (hum! ora!); e finalmente as que têm um certo sabor regional ou rural (carago! arre!). É claro que estas apreciações são subjectivas, mas parecem-se suficientes para quem queira iniciar-se no seu uso adequado.

1 Segundo o Grande Dicionário da Língua Portuguesa de José Pedro Machado, uxte! é equivalente a arre!, apre!, fora!, t´arrenego!, e pardês, o mesmo que o arcaísmo pardeus!...