Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual a origem etimológica e o significado de Ferragudo?

Resposta:

Ferragudo é topónimo que tem origem provável em Ferro Agudo, alcunha atestada em Portugal desde o século XIV (cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa).

Pergunta:

Nos serviços de saúde e de segurança social da Austrália, verificam-se muitas traduções da palavra inglesa carer para cuidador, e carer services para «serviços de cuidados», o que me soa estranho, pois parece-me que cuidado é uma coisa que se tem, e cuidadoso uma coisa que se é, e não uma coisa que se serve. Ex.: «Eu tenho sempre cuidado em lavar as mãos antes de comer.» Ex.: «Eu sou cuidadoso com o meu pai.»

Não seria melhor usar-se a palavra assistente («aquele que presta assistência») ou «prestador de serviços de assistência» ou mesmo ajudante, empregado ou até criado?

Resposta:

Carer pode ser traduzido como cuidador, e não como cuidadoso. Cuidador é palavra dicionarizada, mas concordo que, pelo menos, em Portugal, as soluções propostas pela consulente são mais adequadas.

Pergunta:

Nos textos teóricos de estudos de tradução em inglês surge o termo transeme, cujo significado é unidade textual compreensível. Será que já há equivalente em português? E será correcto dizer "transema"?

Obrigada pela ajuda.

Resposta:

Como se trata de um termo especializado, empregado nos estudos de tradução, é difícil dar-lhe uma resposta segura, porque muito depende das comunidades académicas em que o termo tenha de ser aportuguesado. Seja como for, a solução transema  parece-me adequada, pelo menos, na medida em que o inglês seme e o francês sème correspondem à forma sema em português (cf. Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Qual é a função sintáctica dos constituintes iniciados por além nas frases «Além dos benefícios para a saúde, o desporto é um excelente entretenimento» e «Além de ser benéfico para a saúde, o desporto é um excelente entretenimento»?

Obrigado pelo vosso excelente contributo para o ensino e a aprendizagem da língua portuguesa.

Resposta:

Começo por fazer algumas correcções à primeira frase, de modo a melhorar a articulação entre orações. Sugiro duas formulações: «além dos benefícios que tem para a saúde, o desporto é um excelente entretenimento» e «além de ter benefícios para a saúde, o desporto é um excelente entretenimento».

De acordo com o Dicionário Terminológico (DT), válido em Portugal, trata-se de uma estrutura de articulação entre constituintes, equivalente a uma estrutura de coordenação:

(1) «Além de ter benefícios para a saúde, o desporto é um excelente entretenimento.»1 = «O desporto é um excelente entretenimento e tem benefícios para a saúde.»

(2) «Além de ser benéfico para a saúde, o desporto é um excelente entretenimento.» = «O desporto é um excelente entretenimento e é benéfico para a saúde.»

1 É curioso observar que «além dos benefícios que tem para a saúde, o desporto é um excelente entretenimento» parece aceitável do ponto de vista da sua coesão. Considero que tal se deve ao facto de a oração relativa «que tem para a saúde» ter um sujeito que é co-referente da oração principal «o desporto é um excelente entretenimento»; paralelamente, a oração localiza «os benefícios» em relação a esse sujeito («X tem benefícios»), assegurando que toda a frase remeta para o mesmo tópico («sobre o desporto, diz-se X»).

Pergunta:

Veja-se a seguinte frase:

«Se não adivinhava tudo, a ideia que se formara da senhora Calas não deixava de corresponder à que podia ter agora que sabia.»

Minha dúvida se prende ao fragmento «agora que sabia». Trata-se de oração adverbial temporal iniciada pela locução «agora que»? No entanto, há também a possibilidade de estar a palavra agora ligada à frase anterior: à que podia ter agora (isto é, naquele momento). Nesse caso, porém, a frase «que sabia» se me afigura incompleta. Em suma, o que conjecturo é que a formulação imaginada pelo redator deveria ser esta: «à que poderia ter agora, agora que sabia» (?), ou seja, no exemplo, a palavra agora estaria sendo usada com dupla função. O melhor seria escrever «à que poderia ter naquele momento (atualmente, naquela ocasião), agora que sabia».

Peço a gentileza de um comentário, que, desde já, agradeço.

Resposta:

A oração em causa pode ser classificada como subordinada adverbial, tendo em conta a classificação de «agora que» como locução subordinativa causal e temporal, segundo o Dicionário Houaiss:

«a[gora] que uma vez que, desde que; a partir do momento em que. Ex.: "a. que começou a trabalhar, quase não o vê"»

No entanto, não me parece descabido interpretar «agora que» como uma sequência de advérbio e pronome relativo, parafraseável, como a própria fonte consultada indica, por «a partir do momento (antecedente) em que (pronome relativo)».

Também não me parece necessário construir a frase de maneira a conformar-se a um padrão mais maleável para análise sintáctica: o caso de «sempre que» é disso ilustrativo, porque não é mais correcto dizer «formo uma ideia errada todas as vezes em que adivinho» do que «formo uma ideia errada sempre que adivinho». Este caso parece-me semelhante ao de «agora que»: ambos mantêm de certo modo a semântica do advérbio que constitui a locução e dispensam mais palavras. É, portanto, escusado construir frases como «estou decepcionado agora, agora que me deste a notícia» ou «formo uma ideia errada sempre, sempre que adivinho» em lugar de «estou decepcionado agora que me deste a notícia» ou «formo uma ideia errada sempre que adivinho» (as duas últimas frases estão correctas).