Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«A luz do sol não sabe o que faz.» O o é um pronome demonstrativo. E o que?

Como posso dividir e classificar as orações desta frase? «O que faz» é uma oração subordinada substantiva completiva?

Resposta:

A expressão «o que» é um pronome interrogativo, quer no quadro da classificação tradicional quer à luz do Dicionário Terminológico (DT).1

Quanto a dividir a frase em orações, a perspetiva tradicional determina a seguinte análise (cf. João Andrade Peres e Telmo Móia, Áreas Críticas da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, 1995, pág. 24):

oração subordinante: «a luz do sol não sabe»

oração subordinada integrante (ou completiva): «o que faz»

A oração subordinada completiva «o que faz» é também uma interrogativa indireta, introduzida pelo pronome interrogativo o que.

É de assinalar, contudo, que no quadro sintático da linguística contemporânea, muitas vezes pressuposto pelo DT, a frase é geralmente analisada do seguinte modo (cf. ibidem):

frase matriz: «a luz do sol não sabe o que faz»

frase encaixada: «o que faz»

Refira-se, porém, que o DT não regista o termo frase matriz, embora inclua o termo subordinante, com a seguinte definição:

«Palavra, constituinte ou frase de que depende uma oração subordinada.»

Vemos, assim, que, de acordo com o DT, o termo

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem uma dúvida: o modo condicional tem tempos?

Encontrei em gramáticas antigas e recentes o seguinte: o modo condicional simples e composto flexionado sem referência a tempos; o modo condicional com o tempo do presente simples e o presente composto e o modo condicional com o tempo do presente simples e o pretérito perfeito composto.

Confesso que me sinto intrigada. Já tentei encontrar resposta no Dicionário Terminológico, mas não a encontrei.

Resposta:

Em Portugal, considera-se tradicionalmente que existe um modo condicional que compreende dois tempos: o presente do condicional (estimaria) e o pretérito do condicional (teria  estimado; cf. João António Lopes, Dicionário de Verbos Conjugados, Coimbra, Livraria Almedina, 1995).

Julgo que também é prática corrente falar em condicional simples (estimaria) e condicional composto (teria estimado). Mas não encontro referência que confirme o uso corrente das classificações referidas pela consulente. No Dicionário Terminológico, tal como ele se encontra disponível em linha, não se cruzam os modos verbais com os tempos verbais; contudo, é de supor que se mantenham os termos classificatórios tradicionais.

Pergunta:

Agradeço ao prezado senhor e deleto mestre Carlos Rocha pela resposta «A colocação dos pronomes» que mui satisfatoriamente me redigiu.

Ainda com o escopo de perscrutar algumas questões que não me foram dissolvidas, fui consultar a Moderna Gramática Portuguesa sobre as normas de sínclise. Lá, na pág. 587, Evanildo Bechara faz referência aos estudos de Manuel Said Ali Ida, um magistral sintaxista da língua portuguesa.

Transcrevo-lhe o trecho que se me deparou: «Durante muito tempo viu-se o problema apenas pelo aspecto sintático, criando-se a falsa teoria da ‘atração’ vocabular do ‘não’, do ‘quê’, de certas conjunções e tantos outros vocábulos. Graças a notáveis pesquisadores, e principalmente a Said Ali, passou-se a considerar o assunto pelo aspecto fonético-sintático.»

Ainda na pág. 591, Bechara nos remete a um comentário do prof. Martinz de Aguiar, que transcrevo: «A colocação de pronomes complemento em português não se rege pela fonética, nem é o ritmo, o mesmo binário-ternário, em ambas as modalidades, brasileira e lusitana, que impõe uma colocação aqui, outra ali, não. Ela obedece a um complexo de fatores, fonético (rítmico), lógico, psicológico (estilístico), estético, histórico, que às vezes se entreajudam e às vezes se contrapõem.»

Evanildo Bechara, Moderna Gramática Portuguesa (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2009, pág. 587-591).

Diante disto, gostaria de saber, se não se aplicam mais regras baseadas em atração, em parte, a que outros factores poder-se-ia recorrer para elaborar construções corretas, quanto à sínclise? Como a norma culta tem se comportado diante destas descobertas? Como se pode expandir a explicação do prof. Martinz quando cita o «complexo de fatores...

Resposta:

As perguntas feitas são pertinentes, mas ultrapassam o âmbito do tipo de respostas dadas no Ciberdúvidas, porque já lidam, por um lado, com a discussão de um problema teórico e descritivo, que é o do estatuto clítico dos pronomes átonos, e a relação da norma com os dados evidenciados pela descrição linguística. 

De qualquer modo, há que ter em atenção que, considerando as variedades do português, existe, como já tem sido dito, em comum o facto de estes pronomes ocorrerem na adjacência de um hospedeiro verbal, muito embora se observe um contraste nítido entre português europeu e português brasileiro quanto à colocação dos clíticos em relação a esse hospedeiro (ver M.ª Helena Mira Mateus et al., 2003, Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, 2003, pág. 847):

— no português europeu, a posição dos pronomes clíticos depende em grande parte de atratores da próclise;

— a respeito do português do Brasil, as descrições apontam um menor papel dos atratores da próclise, realçando a tendência para a próclise sistemática na coloquialidade e mesmo no registo formal, enquanto em situações de escrita e oralidade mais formais podem ocorrer a próclise ou a ênclise, mais uma vez, nem sempre em congruência com o que se verifica na variedade europeia.

Quanto a bibliografia, recomendo a leitura da Gramática da Língua Portuguesa (Lisboa, Editorial Caminho, 2003, págs. 826-867) sobre tipologia e colocação dos clíticos.

Pergunta:

Gostaria de saber se a palavra quero é um dígrafo (qu), ou considera o ue como ditongo.

Outra dúvida: a palavra brutais é um hiato?

E na palavra necessárias tem-se um ditongo crescente?

Resposta:

O Dicionário Houaiss define dígrafo como «grupo de duas letras us[adas] para representar um único fonema», incluindo na exemplificação as sequências «gu e qu antes de e e de i». Deste modo, é óbvio que a palavra quero apresenta o dígrafo qu. Note a consulente que se diz que «a palavra X apresenta, inclui, integra um dígrafo», e não que ela «é um dígrafo», porque, como vimos, os dígrafos são sequências de letras — e nunca palavras.

Quanto à segunda palavra, também se diz que inclui um ditongo, ai, e não que ela é um ditongo. Trata-se de um ditongo, porque a sequência vocálica ai pertence à mesma sílaba; se assim não fosse, então, sim, estaríamos na presença de um hiato, como no caso de cair, onde a sequência representada por ai se divide por sílabas diferentes (ca.ir).

Finalmente, sobre necessárias, considera-se que, em fala rápida, se produz um ditongo crescente, ia (em transcrição fonética [jɐ]).

Pergunta:

«Eram meados de junho», ou «Era meados de junho»? Qual é a concordância correta?

Resposta:

A concordância correta é «eram meados de junho», com o verbo ser no plural, seguindo o exemplo de outras expressões de tempo, em especial, na referência às horas: «São onze horas.» Este uso está descrito na Nova Gramática do Português de Contemporâneo (1984, p. 503), de Celso Cunha e Lindley Cintra, que analisam este tipo de frases como orações impessoais onde o verbo ser concorda com o predicativo.