Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A partir da frase abaixo indicada, tenho dúvidas, principalmente sobre o uso relativo ao uso das frases com expressão expletiva «é que», e será que «somos nós quem damos» e «somos nós que damos» são correctas? Se existe uma diferença entre eles?

Frase:

«Toda essa tournée maravilhosa que nos põe a cabeça em água até ao dia em que já somos nós quem dá corda às palavras.»

Outra dúvida:

Será que o verbo dar está mal conjugado na parte da frase «já somos nós quem dá...»?

Resposta:

1. As frases apresentadas são diferentes formas de realçar um constituinte da frase, num processo conhecido como construção de foco ou de clivagem, que tem sido abundantemente comentado aqui no Ciberdúvidas:

(1) «nós é que damos»

(2) «somos nós que damos»

(3) «somos nós quem dá»

Note-se que em (1) a sequência «é que» é uma expressão cristalizada, que não está sujeita a concordância, em contraste com (2) e (3), em que o verbo ser concorda com o pronome relativo – que em (2) e quem em (3). Não se pode dizer que entre esses diferentes tipos de construção clivada haja grande diferença de significado.

2. Concordância com o pronome relativo quem

Consulte a resposta Concordância verbal: quem

Nota: Aconselha-se, também, a consulta de uma resposta em linha sobre construção clivada.

 

Pergunta:

Com a nova terminologia surgem algumas dúvidas, nomeadamente na formação de palavras.

Algumas gramáticas indicam determinadas palavras como formadas por composição morfológica, outras indicam as mesmas palavras como derivadas por prefixação.

Assim, por exemplo, as palavras bicicleta e bisavô aparecem como sendo formadas por composição morfológica, e a palavra filosofia como derivada por prefixação, sendo bi e bis apontados como radical de origem grega, e filo apontado como prefixo. Outras gramáticas referem que as três palavras são formadas por composição morfológica, porque os três são radicais.

Agradecia que me esclarecessem sobre este assunto.

Resposta:

O Dicionário Terminológico (DT) caracteriza radical e prefixo do seguinte modo:

a) o radical é um constituinte morfológico pertencente a uma categoria sintática, falando-se, por isso, de radical adjetival, radical adverbial, radical nominal, radical verbal;

b) o prefixo é um afixo que se associa à esquerda de uma forma de base, entendendo-se por afixo «[o] constituinte que ocorre obrigatoriamente associado a uma forma de base».

Contudo, é verdade que nem sempre é possível distinguir claramente prefixos de radicais, o que explica por vezes certas divergências entre gramáticas escolares. Nos casos apresentados, o problema não se põe em relação a bicicleta e bisavô, uma vez que o elemento bi(s)- (que tem origem latina, e não grega) reúne consenso quanto a ser classificado como prefixo (ver Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, Dicionário Houaiss e iDicionário Aulete). Observe-se, no entanto, a afirmação de bicicleta como um derivado por prefixação é fugir à história da palavra, que surgiu em português por adaptação da francesa biciclette, esta, sim, criada a partir de vários elementos, autónomos e não autónomos: «bi- "dois" + cycle "roda" (< gr. kúklos "círculo") + suf[ixo] dim[inutivo] -ette» (Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Gostaria de saber como se devem escrever em português Guernsey e Jersey, ilhas britânicas do canal da Mancha que não fazem parte integral do Reino Unido.

Se, por um lado, é normal traduzir Jersey por Jérsia (como em Nova Jérsia), já me deparei com a grafia Jérsei.

No caso de Guernsey (em inglês) ou Guernesey (em francês), a Wikipédia aponta Guernesei como aportuguesamento. Mas diria que um mais semelhante com a pronúncia local deveria ser Guérnesei ou Guérnessei. Por outro lado, existe em português a palavra garnisé (um tipo de galinha proveniente de Guernesey). Será legítimo usar Garnisé para a ilha também?

Resposta:

A forma Guernesei1 ocorre efetivamente na versão da Wikipédia em português e em várias outras páginas da Internet, mas enciclopédias e vocabulários ortográficos não acolhem nem fixam tal uso. Deste modo, parece não existir atualmente forma portuguesa consagrada. O mais que se pode dizer é que, ao lado da forma inglesa Guernsey, coexiste a forma francesa, Guernesey.

Em relação a garnisé, etimologicamente é uma adaptação de Guernsey ou Guernesey, mas a palavra deixou de nomear a ilha em apreço, tendo adquirido outras significações, conforme indica o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa: «diz-se de ou galináceo de raça pequena, originária de Guernsey, ilha britânica no canal da Mancha»; «diz-se de ou variedade de bacalhau da mesma procedência»; e, em sentido figurado, «pessoa pequena e irascível»

Relativamente a Jersey, regista-se efetivamente a forma alternativa Jérsia, aplicada tanto à ilha em questão (cf. Dicionário Prático Ilustrado, Lello e Irmãos Editores, 1959) como a parte do nome de um estado norte-americano (New Jersey = Nova Jérsia). É de assinalar, contudo, que José Pedro Machado, no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa (2003), considera que «[h]oje ninguém usa a forma

Pergunta:

Tenho visto o uso indistinto das palavras lacração e lacramento, na Internet.

Gostaria de saber qual a forma correta.

Procurei em vários dicionários e não achei a resposta.

Resposta:

É preferível usar lacração.

O Dicionário Unesp do Português Contemporâneo regista ambas as palavras, que classifica como sinónimas, mas indica que lacramento é «forma muito pouco usada»; a lacração atribui as aceções de «ação de fechar com lacre para impedir a abertura» e «aplicação de lacre no emplacamento de veículos».1

O dicionário Aulete Digital acolhe apenas lacração, o que reforça a indicação do Dicionário Unesp quanto à raridade de lacramento.

1 Segundo o Aulete Digital, emplacamento significa «ação ou resultado de emplacar». O mesmo dicionário define emplacar como «Colocar placa em (veículo)», «obter êxito (com)» (popular), «atingir um número significativo (inclusive de anos de idade)», «ter efeito, concretizar-se».

Pergunta:

As palavras ruído/roído podem ser consideradas parónimas?

Resposta:

No português europeu, não são parónimas, mas, sim, homófonas, uma vez que se pronunciam da mesma maneira, conforme se pode constatar pelas respetivas transcrições fonéticas no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa: ruído, [ruídu]; roído, [ruídu].

Em vários falares do português do Brasil, podem ser parónimas, porque têm pronúncia semelhante mas não idêntica: ruído, [ruídu]; roído, [roídu] (informação de Luciano Eduardo de Oliveira).