Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual é a função sintáctica de «cedo» e «escola» nas frases «Felizmente, o treinador chegou cedo» e «O diretor da escola prestou esclarecimentos aos alunos»?

Resposta:

1«Felizmente, o treinador chegou cedo.»

O verbo chegar é um verbo de movimento que tem subjacente uma ideia de deslocação de um ponto para outro, com evidente destaque para o ponto de chegada, que, todavia, pode, em determinados contextos, estar omisso. Este ponto de chegada, introduzido pela preposição a («Chegar a Lisboa») é interpretado como constituindo um complemento oblíquo que satura, ou preenche plenamente, o sentido do verbo. Cedo é, por seu lado, um advérbio de tempo, que não é necessário para completar o sentido do verbo. Por essa razão, «cedo» é um modificador.

2«O diretor da escola prestou esclarecimentos aos alunos.»

Diretor pode ser entendido, aqui, como um nome derivado de dirigir, sendo «diretor da escola» equivalente a «Ele dirige a escola». Neste contexto, «a escola» é argumento interno do verbo dirigir, que está subjacente na palavra diretor. Assim, «da escola» é complemento do nome diretor.

Pergunta:

No Brasil, temos a expressão «não estar no gibi» («ser inacreditável, impossível de ser imaginado»). Vocês saberiam me informar a origem da palavra gibi bem como me dar uma pista sobre a motivação linguística ou extralinguística para a expressão «não estar no gibi»?

Resposta:

O Dicionário Houaiss define gibi como vocábulo de etimologia obscura, característico do registo informal do português do Brasil, que significa «garoto negro; negrinho» e «publicação em quadrinhos, ger[almente] infanto-juvenil». O segundo significado terá surgido pelo facto de gibi ter feito parte do título de uma publicação de histórias aos quadradinhos («em quadrinhos» no Brasil), a Gibi Trissemanal, lançada em 1939 por Roberto Marinho (1904-2003) e muito popular no Brasil (Cf. artigo "Quadrinhos - Não está no Gibi", no site Revista de História.com.br).

Como subentrada de gibi, o mesmo dicionário acolhe a expressão, também informal, «não estar no gibi», no sentido de «ser inacreditável, impossível de ser imaginado». Parece-me plausível que a expressão se relacione com o fantástico das histórias aos quadradinhos publicadas nos gibis, com o qual, por comparação, se salientam uma situação ou um evento extraordinários («se não está sequer no Gibi, é porque se trata de uma história inimaginável»). 

Pergunta:

As palavras sobressalto, tranqueira e roca seriam mesmo as formas vernáculas portuguesas que correspondem, respectivamente, às palavras surpresa, trincheira e rocha, que, por sua vez, são aportuguesamentos das palavras francesas surprise, trenchier (francês antigo) e roche?

Quanto à primeira elencada, sobressalto, hodiernamente, parece ter tão-somente o sentido de uma surpresa má, assustadora, perturbadora, aterrorizadora, enquanto surpresa pode ser tanto boa quanto má, o que me causa dúvida e me faz indagar se no passado a palavra sobressalto poderia traduzir uma surpresa boa ou má ou também apenas má.

Ainda gostaria de saber por que as formas francesas, ainda que aportuguesadas, vieram a substituir as vernáculas portuguesas muito mais legítimas no nosso idioma.

Que a estrela de primeira grandeza da Internet, o Ciberdúvidas, ilumine tudo com a sua luz esclarecedora.

Muito obrigado.

Resposta:

1. Se quisermos aplicar o critério da vernacularidade na seleção do léxico, veremos que há limitações, porque o português, à semelhança das outras línguas, tem assimilado empréstimos estrangeiros desde que se diferenciou do latim. Mesmo perante uma palavra de origem latina patrimonial e um empréstimo cognato de outra língua românica, isto é, também resultante da evolução do latim, não se deve preterir o empréstimo a favor da palavra patrimonial, até porque, frequentemente, os membros desse par vocabular divergiram semanticamente e têm contextos próprios de uso, incompatíveis com a substituição do empréstimo pelo vernáculo.

2. Em relação aos três casos apresentados pelo consulente, há a dizer que apenas um configura um par de cognatos, roca/rocha. Assim:

2.1. Roca, atestada, pelo menos, desde os princípios do século XI (Dicionário Houaiss, com base em José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa) e praticamente igual ao castelhano roca, provém do latim vulgar *rŏcca, que terá provavelmente origem pré-latina (idem). A palavra rocha, atestada desde meados do século XII (idem, baseado em Machado, op. cit.), surge como adaptação do francês roche, que é forma divergente do mesmo étimo de roca (idem). Tendo em conta que, por um lado, segundo José Pedro Machado (Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa), rocha é um «galicismo antiquíssimo», documentado desde o século XII (pelo menos, como apelido), e que, por outro, rocha tem hoje maior uso que roca (= «rocha»), não me parece avisado, depois de tantos séculos, condenar agora o primeiro vocábulo e defender como legítimo o segundo. Se rocha fosse um aportuguesamento com apenas dez anos, ainda far...

Pergunta:

«O que é feito do dinheiro?», isto com o sentido de «Onde está o dinheiro?».

«O que é feito do dinheiro?» é português correcto? Não encontrei esta expressão nos dicionários que tenho cá por casa.

Muito obrigado.

Resposta:

É português corretíssimo, sendo frequente no registo informal (o que não impede que possa ocorrer na linguagem jornalística). Recomendo a consulta de José Pedro Machado, Grande Dicionário da Língua Portuguesa (Lisboa, Sociedade da Língua Portuguesa/Edições Alfa/Círculo de Leitores, 1991), onde no final do verbete relativo a feito1 se lê: «Que é feito...? Onde está?, que fim levou?, onde para?, que fizeram a? que sucedeu a?»

Pergunta:

Quanto mede um marquês de vinho?

Resposta:

Entre vários dicionários consultados (Dicionário Houaiss, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, e dicionário da Academia das Ciências de Lisboa), só os dois últimos, ou seja, o Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora (DLP) e o da Academia das Ciências de Lisboa, indicam que marquês, entre várias aceções, tem também, como regionalismo em Portugal, a de «meio quartilho», isto é, metade da «quarta parte de uma canada; meio litro» (DLP). Estas fontes não explicam a origem deste uso — estará ele relacionado com o Marquês de Pombal, que tanto se preocupou com o comércio do vinho?