Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual o significado das iniciais SPA (ex.: hotel com SPA)?

Resposta:

"SPA" é uma pseudossigla, porque resulta de uma interpretação (historicamente fantasista) do topónimo Spa, nome de uma conhecida estância termal na Bélgica.

Popularmente, considera-se que Spa representa as expressões latinas salus per aquam ou sanitas per aquam, que se traduzem por «a saúde pela água». Trata-se, porém, de uma etimologia falsa, que apareceu no contexto de razões de promoção comercial e não deve ser anterior ao século XX, visto não se encontrar atestada nem na Antiguidade, nem na Idade Média, nem em séculos mais próximos.

Na verdade, Spa parece ter origem ou num substantivo comum do valão (dialeto do francês) – espa = «fonte» –, ou num topónimo latino, do tempo em que a região de Spa se encontrava no norte da Gália romana – Aquae Spadanae.

 

Fontes: Spa, Wikipedia (inglês), e Online Etymology Dictionary.

Pergunta:

Gostava de saber se existe algum estudo em Fonética ou Fonologia do português europeu que apoie a tese de que a sequência de vogais como em saia é considerada como tritongo.

Acontece que em várias descrições da fonética do português europeu da Rússia e da antiga URSS publicadas desde os anos 80 e até as mais recentes estas sequências vocálicas vêm sido repetidamente abordadas como tritongos «pronunciados numa só sílaba», o que gera muita confusão nos estudantes do Português Língua Estrangeira (PLE), visto que tal pronúncia é foneticamente difícil se não impossível.

Muito obrigado!

Resposta:

Em saia não há um tritongo, mas sim duas sílabas separadas por uma semivogal (glide).

Os tritongos em português produzem-se na pronúncia normal e rápida quando a u ou i se segue um ditongo:

iguais – a sequência uai é realizada como tritongo na pronúncia normal e rápida;

essenciais – a sequência iai é um tritongo nas mesmas condições.

Os tritongos também ocorrem, na pronúncia rápida, pelo fenómeno de redução vocálica de uma vogal átona seguida de ditongo:

poeira – a sequência oei é pronunciada como "uei". Cf transcrição fonética [pwˈɐj.ɾɐ] no Portal da Língua.

reais – a sequência eai é pronunciada como "iai" – transcrição [jaj].

peão – "ião" – transcrição fonética: [pjˈɐ̃w ]. Cf. Portal da Língua Portuguesa.

Os tritongos são também frequentes nas formas de 2.ª pessoa do plurais, hoje pouco usadas pela norma-padrão, mas ainda vivas nos dialetos do interior norte de Portugal: passeais, "iai".

Pergunta:

Sempre usei «ter vontade de», mas tenho visto escrito (e dito) «ter vontade em», o que me soa estranho e até errado.

Tenho razão?

Resposta:

A regência correta de vontade é indiscutivelmente com de.

No entanto, há de facto quem empregue a preposição em antes de infinitivo, uso que não tem sido objeto de censura normativa, nem é de molde a considerá-lo incorreto de forma perentória. Digamos, portanto, que se aceita.

Sobre esta questão, vale a pena consultar, no blogue Linguagista, o apontamento que Helder Guégués dedicou  a esta regência e os comentários associados:  Nesta publicação, dá-se uma abonação de «vontade em», do escritor e colunista António Sousa Homem (Porto, 1921):

(1) «D. Ester, minha mãe, acreditava que a generosidade do gesto tinha mais a ver com a vontade em se ver livre da gritaria do que com a sua aversão às plantas» (António Sousa Homem, Um Promontório em Moledo, Bertrand, p. 221).

Pergunta:

O elemento de composição afro leva sempre hífen?

"Afro-portenho" ou "afroportenho"? "Afro-montevideano" ou "afromontevideano"?

Obrigado.

Resposta:

As formas afro-portenho e afro-montevideano são de recomendar, mas os acordos ortográficos – tanto o de 1945 como o de 1990 – não são claros quanto ao uso de hífen nestes compostos, que consistem em combinar dois gentílicos (entendendo gentílico de forma muito lata).

No acordo de 1945 (Base XXVIII, c)), referem-se apenas «nomes em que se combinam simetricamente formas onomásticas (tal como em bispo-conde, médico-cirurgião, etc.): Áustria-Hungria, Croácia-Eslavónia», donde se infere que a combinação dos gentílicos correspondentes terá de exibir o hífen: austro-húngaro. No acordo de 1990 (Base XV, 1), faz-se menção mais clara a estes compostos (suprimem-se os exemplos irrelevantes para este esclarecimento): «Emprega-se o hífen nas palavras compostas por justaposição que não contêm formas de ligação e cujos elementos, de natureza nominal, adjetival, numeral ou verbal, constituem uma unidade sintagmática e semântica e mantêm acento próprio, podendo dar-se o caso de o primeiro elemento estar reduzido: [...] afro-asiático, afro-luso-brasileiro, [...] luso-brasileiro, [...].»

Contudo, a verdade é que o elemento afro, como outros – luso-, hispano-, nipo- – nem sempre se hifeniza, como comprova o caso de afrodescendente – e nos outros casos, lusodescendente ou hispanofalante. (cf. Vocabulário Ortográfic...

Pergunta:

Em inglês, one pode ser utilizado como pronome, e, em espanhol, uno e una também podem ser utilizados como pronomes.

Creio valer a mesma coisa para um e uma, em português, ou me equivoquei?

No caso, seria (ou será...) usado para indicar «alguém», indefinido, indeterminado ou inespecífico. Ou não é bem assim afinal?

Muitíssimo obrigado.

Resposta:

Em português, não se costuma usar um com o significado de «alguém».

Não quer isto dizer que não seja impossível, por exemplo, em certos textos mal traduzidos.

No entanto, mais corrente parece a expressão «uma pessoa», pelo menos, no português de Portugal:

(1) «Uma pessoa fica espantada com as notícias.» = alguém fica espantado.../ficamos espantados...

Acrescente-se que mesmo do ponto de vista histórico o uso de um com o significado de «alguém» é considerado um estrangeirismo, como observou o gramático brasileiro Said Ali (1861-1953), na sua Gramática Histórica da Língua Portuguesa (Edições Melhoramentos, 1965, p. 117; mantém-se a ortografia do texto citado pelo autor):

«Exemplos de um na acepção de "alguém" não são raros na Nova Floresta [N. Flor.] de [Manuel] Bernardes [1644-1710]. Mas como dificilmente se encontra o indefinido com tal significação em escritores anteriores, parece antes que o seiscentista se utilizou de um estrangeirismo (cf. o uso do italiano uno), o qual não conseguiu aclimar-se em nossa língua:

"Quanto hum he mais pobre, tanto tem menos parentes (N. Flor. 1, 259) – Não he por certo esta a humildade que o Padre Affonso Rodrigues chama de garavato, que he dizer hum males de si proprio, para que os ouvintes acudam por elle (ib. 5, 272) – Avisa o Espírito Santo que não queira ser hum ser juiz, senão sente em si virtude poderosa para contrastar iniquidades (ib. 5, 269)."»