Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Sempre usei «ter vontade de», mas tenho visto escrito (e dito) «ter vontade em», o que me soa estranho e até errado.

Tenho razão?

Resposta:

A regência correta de vontade é indiscutivelmente com de.

No entanto, há de facto quem empregue a preposição em antes de infinitivo, uso que não tem sido objeto de censura normativa, nem é de molde a considerá-lo incorreto de forma perentória. Digamos, portanto, que se aceita.

Sobre esta questão, vale a pena consultar, no blogue Linguagista, o apontamento que Helder Guégués dedicou  a esta regência e os comentários associados:  Nesta publicação, dá-se uma abonação de «vontade em», do escritor e colunista António Sousa Homem (Porto, 1921):

(1) «D. Ester, minha mãe, acreditava que a generosidade do gesto tinha mais a ver com a vontade em se ver livre da gritaria do que com a sua aversão às plantas» (António Sousa Homem, Um Promontório em Moledo, Bertrand, p. 221).

Pergunta:

O elemento de composição afro leva sempre hífen?

"Afro-portenho" ou "afroportenho"? "Afro-montevideano" ou "afromontevideano"?

Obrigado.

Resposta:

As formas afro-portenho e afro-montevideano são de recomendar, mas os acordos ortográficos – tanto o de 1945 como o de 1990 – não são claros quanto ao uso de hífen nestes compostos, que consistem em combinar dois gentílicos (entendendo gentílico de forma muito lata).

No acordo de 1945 (Base XXVIII, c)), referem-se apenas «nomes em que se combinam simetricamente formas onomásticas (tal como em bispo-conde, médico-cirurgião, etc.): Áustria-Hungria, Croácia-Eslavónia», donde se infere que a combinação dos gentílicos correspondentes terá de exibir o hífen: austro-húngaro. No acordo de 1990 (Base XV, 1), faz-se menção mais clara a estes compostos (suprimem-se os exemplos irrelevantes para este esclarecimento): «Emprega-se o hífen nas palavras compostas por justaposição que não contêm formas de ligação e cujos elementos, de natureza nominal, adjetival, numeral ou verbal, constituem uma unidade sintagmática e semântica e mantêm acento próprio, podendo dar-se o caso de o primeiro elemento estar reduzido: [...] afro-asiático, afro-luso-brasileiro, [...] luso-brasileiro, [...].»

Contudo, a verdade é que o elemento afro, como outros – luso-, hispano-, nipo- – nem sempre se hifeniza, como comprova o caso de afrodescendente – e nos outros casos, lusodescendente ou hispanofalante. (cf. Vocabulário Ortográfic...

Pergunta:

Em inglês, one pode ser utilizado como pronome, e, em espanhol, uno e una também podem ser utilizados como pronomes.

Creio valer a mesma coisa para um e uma, em português, ou me equivoquei?

No caso, seria (ou será...) usado para indicar «alguém», indefinido, indeterminado ou inespecífico. Ou não é bem assim afinal?

Muitíssimo obrigado.

Resposta:

Em português, não se costuma usar um com o significado de «alguém».

Não quer isto dizer que não seja impossível, por exemplo, em certos textos mal traduzidos.

No entanto, mais corrente parece a expressão «uma pessoa», pelo menos, no português de Portugal:

(1) «Uma pessoa fica espantada com as notícias.» = alguém fica espantado.../ficamos espantados...

Acrescente-se que mesmo do ponto de vista histórico o uso de um com o significado de «alguém» é considerado um estrangeirismo, como observou o gramático brasileiro Said Ali (1861-1953), na sua Gramática Histórica da Língua Portuguesa (Edições Melhoramentos, 1965, p. 117; mantém-se a ortografia do texto citado pelo autor):

«Exemplos de um na acepção de "alguém" não são raros na Nova Floresta [N. Flor.] de [Manuel] Bernardes [1644-1710]. Mas como dificilmente se encontra o indefinido com tal significação em escritores anteriores, parece antes que o seiscentista se utilizou de um estrangeirismo (cf. o uso do italiano uno), o qual não conseguiu aclimar-se em nossa língua:

"Quanto hum he mais pobre, tanto tem menos parentes (N. Flor. 1, 259) – Não he por certo esta a humildade que o Padre Affonso Rodrigues chama de garavato, que he dizer hum males de si proprio, para que os ouvintes acudam por elle (ib. 5, 272) – Avisa o Espírito Santo que não queira ser hum ser juiz, senão sente em si virtude poderosa para contrastar iniquidades (ib. 5, 269)."»

<i>Mortandade</i>, <i>morticínio</i> e <i>genocídio</i>
A propósito de massacres no conflito Israel-Hamas

A sinonímia parcial entre mortandade, morticínio e genocídio bem como a relação destas palavras com massacre dão matéria para este apontamento do consultor Carlos Rocha.

Pergunta:

Tenho uma dúvida de utilização do termo natural e residente, a saber:

1. Qual está mais correto, «natural dos Calvos, ou natural de Calvos»?

2. «Residente nos Calvos», ou «residente em Calvos»?

Resposta:

Depende do uso e história locais, e, portanto, a resposta não pode ser perentória. Muitas vezes convivem os dois usos, com artigo definido e sem ele, com funções diferentes, como parece ser o caso de Calvos.

Se se refere o topónimo Calvos, que identifica uma localidade da freguesia de Sarzedas, no concelho de Castelo Branco, não foi possível obter informação direta para a elaboração desta resposta. O que se conseguiu apurar baseia-se em consultas na Internet, as quais, mesmo assim, podem ser elucidativas. Verifica-se, por exemplo, que quando se trata de referir endereços e associar a povoação à vida administrativa da freguesia, se escreve o nome sem artigo definido:

(1) «Número doze: prédio urbano, sito em Calvos, na freguesia de Sarzedas, concelho de Castelo Branco, que se compõe por um edifício de r/chão e 1.º andar [...] ("Cartório Notarial – Castelo Branco [...], Justificação", Gazeta do Interior, 16 de dezembro de 2015, p. 4)

No entanto, um cronista local, provavelmente mais conhecedor dos usos correntes, junta o artigo definido ao topónimo:

(ii) «Talvez pelo que vejo e sinto nos Calvos e em outras “terreolas” das freguesias de Sarzedas e de Santo André das Tojeiras [...].» (João Lourenço Roque, "Digressões Interiores: Olha a laranjinha que caiu caiu…", Reconquista, 22/07/2023 )

Saber se um uso é mais correto do que o outro será uma questão de perceber qual poderá ser a motivação deste topónimo. Uma pesquisa preliminar aponta para duas hipóteses:

– o topónimo tem origem no substantivo comum calvo, que pode significar «terreno árido numa elevação»;...