Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual o processo de formação de pontiagudo e abrilhantar?

Resposta:

Pontiagudo: as opiniões dividem-se, porque há quem considere que é um composto morfológico (ponta + i + agudo; cf. Dicionário Houaiss), enquanto, para outros, a palavra já não é analisável, podendo ser tratada como palavra simples (cf. M.ª Helena Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, 2003, p. 980).

Abrilhantar: é uma palavra derivada por parassíntese (a + brilhante + ar; cf. aterrar < a + terra + ar).

Pergunta:

Lembro-me de que, certa vez, ouvi um de meus professores comentar que substantivos abstratos, ao serem flexionados no plural, se tornam concretos.

Faz sentido sua afirmação? 

Obrigado.

Resposta:

A pluralização de substantivos abstratos não tem por resultado sistemático a associação de traços semânticos concretos.¹ Há casos em que, na verdade, o substantivo muda de significação e se torna menos abstrato ou mesmo concreto na passagem ao plural: fala-se da beleza (abstrato) de um quadro, mas usa-se belezas (concreto) no sentido de «pessoas/coisas/lugares que têm beleza» (daí «belezas naturais»). Contudo, outros substantivos há em que tal não ocorre, mantendo-se o valor abstrato no plural: por exemplo, ciúmes, o plural de ciúme, não perde a interpretação abstrata que tem no singular, o mesmo acontecendo com o plural de saudade, saudades.

Maria Helena de Moura Neves, em Gramática de Usos do Português (São Paulo: Editora Unesp, 2000, pág. 84-85), apresenta vários exemplos de substantivos classificáveis como abstratos que não se tornam concretos no plural, entre os quais se cita aqui o seguinte:

1) «Não vá causar ciúmes ao artista.» = «Não vá causar ciúme ao artista.»

A este exemplo, proponho juntar este outro:

2) «Recordo a minha terra com saudades.» = «Recordo a minha terra com saudade.»

Embora Moura Neves não se refira especificamente às categorias concreto/abstrato, que não fazem parte do seu quadro de análise¹, mas, sim, à oposição contável/não-contável, é importante registar o que ela afirma acerca dos substantivos não-contáveis, entre os quais se incluem muitos dos tradicionalmente chamados abstratos (idem; negrito no original):

«[Nos referidos] casos, por exemplo, os substantivos no plural são não-contáveis porque a forma singular pode ser usada sem oposição semânt...

Pergunta:

Nos últimos anos, têm-se construido indicadores agregados que sintetizam, num único valor, informações sobre domínios diversos, como: qualificações dos recursos humanos, número de servidores da Internet, número de publicações científicas, investimentos em I&D, projetos de cooperação empresarial, etc. Embora considere que as palavras composto e compósito podem ser utilizadas indiferenciadamente para classificar tais indicadores agregados (tanto mais que essas palavras têm a mesma origem no termo latino compositu), tenho utilizado mais o termo composto para essa classificação, por entender que esta palavra tem uma fonética e uma utilização mais compatíveis com as caraterísticas da língua portuguesa.

Gostaria de conhecer o vosso parecer sobre esta minha opinião.

Obrigado.

Resposta:

Pode empregar compósito, na aceção de «caracterizado pela heterogeneidade de elementos; feito de vários elementos ou partes diferentes», significado que o torna quase sinónimo de composto, apesar de com este adjetivo não se salientar tanto a noção de heterogeneidade. Além disso, o facto de compósito ser palavra transmitida ao português por via erudita – por isso, mantém uma configuração fónica e morfológica mais próxima da latina – não o desvaloriza no confronto com composto, cuja morfologia é mais concorde com os padrões do vocabulário herdado do latim vulgar. Deste modo, não se nota diferença significativa entre entre compósito e composto quando se trata de classificar os indicadores que refere. O uso de um ou outro adjetivo no contexto em apreço será uma decisão da comunidade científica que pretenda definir um termo para tal referente.

Pergunta:

Tornar-se e revelar-se são identificados como verbos predicativos, mas não será o pronome se um complemento direto, configurando-os como transitivos-predicativos? Ex.:

– «Ele tornou-se cruel» (construção semelhante a «A vida tornou-o cruel»);

– «O tempo revelou-o cruel»; «ele revelou-se cruel».

Mostrou-se também não tem a mesma classificação?

Obrigada!

Resposta:

Tornar-se é um verbo predicativo ou copulativo num contexto como «tornou-se cruel». O mesmo se diga acerca de mostrar-se e revelar-se nas frases «ele revelou-se cruel» e «ele mostrou-se cruel», muito embora esta classificação não deixe de levantar alguns problemas de análise. Passemos à fundamentação destas afirmações.

Não podemos considerar equivalentes, nem sintática nem semanticamente, as duas frases que a consulente apresenta — «Ele tornou-se cruel» e a «A vida tornou-o cruel». Comecemos por analisar o segundo exemplo, recorrendo a um teste de substituição:


(1) «A vida tornou o Pedro cruel.»
(2) «A vida tornou-o cruel.»
(3) ? «A vida tornou-o.»

 Verificamos que «cruel» é um nome predicativo do complemento direto, obrigatoriamente selecionado pelo verbo, pois, de outro modo, como ocorre em 3, a frase não é aceitável. Por isso, consideramos o verbo tornar um verbo transitivo-predicativo.1

 No entanto, no primeiro exemplo que a consulente apresenta — «ele tornou-se cruel» —, não podemos classificar o verbo tornar-se do mesmo modo, uma vez que não podemos considerar o clítico se pronome pessoal objeto direto, visto que não podemos reforçá-lo (o * marca agramaticalidade):


(4) «Ele tornou-se cruel.»
(5) *«Ele tornou-se cruel a si mesmo.»

 Deste modo, pode afirmar-se que em 4 não ocorre um pronome reflexo, mas, sim, um pronome inerente, o que permite afirmar que nesse contexto tornar-se é um verbo copulativo.2

 Quanto aos verbos revelar e mostrar associados ao pronome se, a aplicação do ...

Pergunta:

Não seria possível interpretar o sentido ou, melhor, o valor semântico da locução «de modo que» como conjunção explicativa? Ademais, em seu livro Português ao Alcance de Todos, Nelson Custódio de Oliveira a inclui na listagem das coordenadas explicativas ao lado de outros conectores como: «isto é», «por exemplo». No entanto não há exemplos de aplicação.

Na frase «o garoto está doente, de modo que foi pra aula», não seria possível substituir «de modo que» por porque, já que pode ser interpretado como se a segunda oração explicasse algo dito na primeira?

Resposta:

A locução «de modo que» é descrita como locução conjuntiva consecutiva, ou seja, é um conector que define um nexo de consequência entre a situação ou acontecimento referidos na oração subordinante («o rapaz está doente») e o que se diz na oração subordinada («não foi à escola»). Observe-se que, tendo em conta o conhecimento do mundo, a frase apresentada parece incoerente, porque normalmente o facto de faltar à escola é que é consequência, por exemplo, de um estado de doença.

A locução «de modo que» pode também ter valor final: «disfarçou seu mal-estar, de m. que ninguém o percebesse» (Dicionário Houaiss).