Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, em sua versão eletrônica (Rio de Janeiro: Objetiva, 2009), diz o seguinte, numa nota à segunda acepção do vocábulo circunflexo:

«Na ortografia do português, [o acento circunflexo] sobrepõe-se às vogais tônicas /e/ e /o/, indicando-lhes o timbre fechado em palavras oxítonas ou proparoxítonas (como alô, malê, êxito, côvado); sobrepõe-se ainda ao /a/ tônico seguido de n ou m, em palavras paroxítonas terminadas em consoante que não o s (âmbar) e em alguns vocábulos tomados de empréstimo ao inglês (bônus, tênis etc.).»

No entanto, o próprio dicionário registra palavras como câimbra e zâimbo, nas quais a letra que segue o a com acento circunflexo (â) é um i, e não m ou n. Assim, como explicar a acentuação dessas palavras? Trata-se de casos especiais? Há alguma motivação especial para a existência dessas formas ao lado de cãibra e zãibo?

Resposta:

Trata-se de variantes que o próprio Dicionário Houaiss, ao remetê-las para cãibra e zãibo,* permite interpretar como usos secundários, não preferenciais. As variantes câimbra e zâimbo ocorrem apenas nos dicionários brasileiros (Aurélio XXI, Houaiss, Michaelis), sendo desconhecidas dos dicionários elaborados em Portugal. Embora verifique que são possíveis no contexto dos princípios da ortografia do português, não tenho acesso a fontes que lhes tracem um historial e as justifiquem de maneira mais precisa. Mas atrevo-me a supor que terão aparecido justamente como forma de obviar o facto de não ser frequente a ocorrência de palavras gráficas com til no seu interior (os diminutivos como cãozinho constituem uma exceção, motivada pelas características do sufixo -zinho).

*Sobre o vocábulo zãibo, usado nas aceções de «torto», «estrábico» e «que tem pernas tortas, cambado das pernas, coxo», observe-se que os dicionários consultados (Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, Dicionário Priberam da Língua Portuguesa e Dicionário Houaiss) o registam como variante de zambro, «cambado das pernas». Consignam-se ainda outras variantes: zãibro e zambo.

Pergunta:

Ouço muito as pessoas fazerem uso da locução «fora que» para acrescentar algo.

Gostaria de saber se a norma culta registra essa construção ou se fica só para uso coloquial. Ex.: «Suas palavras não me comovem, fora que já estou ficando chateado com tudo isso.»

Resposta:

É uma locução que a norma culta não aceita. Depreende-se que lhe é atribuído geralmente o valor de «além disso» e «também». Ocorre coloquialmente, como revelam certos comentários registados em páginas da Internet relacionadas com o Brasil: «E o lugar é de porte médio, mas acumula muita sujeira, e os donos são desorganizados, então limpo, organizo e não demora, tudo fica desorganizado novamente. Fora que isso é todo dia antes de eu abrir o estabelecimento» (blogue Espaço do Trabalhador).

Pergunta:

Gostaria de saber se existe em português o correspondente à expressão inglesa frame story, a qual é, de acordo com a Wikipedia em inglês: «A frame story (also known as frame tale, frame narrative, etc.) is a literary technique that sometimes serves as a companion piece to a story within a story, whereby an introductory or main narrative is presented, at least in part, for the purpose of setting the stage either for a more emphasized second narrative or for a set of shorter stories. The frame story leads readers from a first story into another, smaller one (or several ones) within it.»

Traduziria eu assim: «É uma técnica literária que algumas vezes serve como peça associada a uma história dentro de uma história, por meio da qual uma narrativa introdutória ou principal é apresentada, pelo menos em parte, com o propósito de estabelecer o cenário tanto para enfatizar melhor a segunda narrativa como para uma série de histórias curtas. A frame story conduz os leitores a transporem-se de uma primeira história para outra menor (ou várias menores) dentro dela.»

A expressão correspondente a frame story poderia ser «história intercalada»?

Agradeço antecipadamente a gentileza de vossa resposta.

Resposta:

Um termo português equivalente a frame story é «moldura narrativa» (ou narrativa-moldura), pelo menos, no âmbito dos estudos literários e fílmicos produzidos no Brasil, para designar um processo de incorporação de histórias. Há também quem use «relato emoldurado» e «história emoldurada». Contudo, verifico que, em estudos publicados em Portugal, também se usa o termo «moldura narrativa»; exemplo (sublinhado meu): «Em termos formais, podemos distinguir os seguintes agrupamentos, numa ordem crescente de complexidade enunciativa: (1) mito ou fábulas (storytelling como temática); (2) várias histórias introduzidas intradiegeticamente; (3) filmes com uma moldura narrativa (frame story) [...]» (Fátima Chinita, "Metanarrativa cinematográfica: a ficcionalização autoral" in Tiago Batista e Adriana Martins,

Pergunta:

Antes de mais, gostaria de elogiar a utilidade deste vosso projecto, que me tem ajudado bastante ao longo dos anos em que tenho vindo a estudar.

[Uma questão], que espero que me possam esclarecer: retificar e ratificar são, indiscutivelmente, palavras antónimas, ou há a possibilidade de se considerar que não o são?

Obrigado, antecipadamente, pela vossa resposta.

Resposta:

Retificar (ou, em Portugal, rectificar, antes do novo acordo ortográfico) e ratificar são mesmo palavras diferentes, mas não propriamente antónimas, porque os seus significados não são opostos nem contrários; digamos que não significam a mesma coisa e, por isso, são simplesmente contrastantes. Segundo o Dicionário Houaiss, estes verbos têm sentidos e etimologias diferentes:

(1) retificar: «emendar, corrigir»; «radical do latim rectus, a, um, "regido, governado, direito, reto, direto" + -i- + -ficar»;

(2) ratificar: «confirmar, validar»; «latim medieval ratificare, do radical de ratum, supino de reor, reris, ratus sum, reri, "contar, calcular" [...].»

Pergunta:

«Tomou-o um anjo nos braços.»

Qual a função sintática de «nos braços»?

Resposta:

No sentido de «segurar», o verbo tomar é usado de acordo com o esquema «segurar alguém/alguma coisa em [braços/mãos]» (ver tomar no Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses, Lisboa, Texto Editora, 2007); ou seja, este verbo seleciona um complemento direto («alguém»/«alguma coisa») e um complemento oblíquo, ou seja, um complemento introduzido por preposição que não pode ser substituído pelo pronome lhe. Sendo assim e tendo em conta a frase em questão, direi que o complemento «nos braços» é um complemento oblíquo.