Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem acerca da classificação da segunda oração que ocorre na frase: «A mortalidade já atingiu níveis próximos do zero, pelo que ninguém espera uma nova redução até ao final do século.» O seu sentido parece estar de acordo com a natureza das orações coordenadas conclusivas (introduzidas pela locução «por isso»), no entanto, a relação de causa-consequência que estabelece com a oração anterior poderá aproximá-la das orações subordinadas adverbiais consecutivas. Uma vez que o Dicionário Terminológico não esclarece esta situação, será que me poderão apresentar outros argumentos inequívocos?

Antecipadamente, agradeço a vossa atenção.

Resposta:

Não tenho os argumentos inequívocos que a consulente pretende. À locução «pelo que» pode efetivamente ser atribuído um valor conclusivo, conforme já foi referido numa resposta anterior. No entanto, outros podem também ser-lhe atribuídos. Com efeito, apesar do seu significado conclusivo, a estrutura em questão é também suscetível de ser encarada como uma oração adjetiva relativa apositiva, com a função de modificador frásico.*

* Agradeço a  Rita Veloso, colaboradora da Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian e autora do capítulo aí dedicado à subordinação relativa (págs. 2061-2133), o seguinte esclarecimento (comunicação pessoal): «A frase em questão – «A mortalidade já atingiu níveis próximos do zero, pelo que ninguém espera uma nova redução até ao final do século» – é, efetivamente, uma oração relativa adjetiva. O seu antecedente é a oração principal e, quando temos um antecedente frásico, a relativa é sempre apositiva (ou explicativa). O nexo semântico é, realmente, conclusivo, mas os mesmos nexos semânticos podem ser estabelecidos através de diferentes nexos sintáticos. Se seguíssemos a classificação feita nas Áreas Críticas da Língua Portuguesa (João Peres e Telmo Móia, 1995, Editorial Caminho), diríamos que é uma oração relativa de frase, apositiva.»

Pergunta:

O habitante ou natural de Alvor (Algarve) é um "alvoreiro", ou é um "alvorense"?

Resposta:

O gentílico usado no registo formal é alvorense, que José Pedro Machado regista no seu Grande Vocabulário da Língua Portuguesa. No entanto, nos registos informais, de caráter popular, também se usa alvoreiro, pelo que podemos apreciar em certas páginas da Internet.

Pergunta:

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, em sua versão eletrônica (Rio de Janeiro: Objetiva, 2009), diz o seguinte, numa nota à segunda acepção do vocábulo circunflexo:

«Na ortografia do português, [o acento circunflexo] sobrepõe-se às vogais tônicas /e/ e /o/, indicando-lhes o timbre fechado em palavras oxítonas ou proparoxítonas (como alô, malê, êxito, côvado); sobrepõe-se ainda ao /a/ tônico seguido de n ou m, em palavras paroxítonas terminadas em consoante que não o s (âmbar) e em alguns vocábulos tomados de empréstimo ao inglês (bônus, tênis etc.).»

No entanto, o próprio dicionário registra palavras como câimbra e zâimbo, nas quais a letra que segue o a com acento circunflexo (â) é um i, e não m ou n. Assim, como explicar a acentuação dessas palavras? Trata-se de casos especiais? Há alguma motivação especial para a existência dessas formas ao lado de cãibra e zãibo?

Resposta:

Trata-se de variantes que o próprio Dicionário Houaiss, ao remetê-las para cãibra e zãibo,* permite interpretar como usos secundários, não preferenciais. As variantes câimbra e zâimbo ocorrem apenas nos dicionários brasileiros (Aurélio XXI, Houaiss, Michaelis), sendo desconhecidas dos dicionários elaborados em Portugal. Embora verifique que são possíveis no contexto dos princípios da ortografia do português, não tenho acesso a fontes que lhes tracem um historial e as justifiquem de maneira mais precisa. Mas atrevo-me a supor que terão aparecido justamente como forma de obviar o facto de não ser frequente a ocorrência de palavras gráficas com til no seu interior (os diminutivos como cãozinho constituem uma exceção, motivada pelas características do sufixo -zinho).

*Sobre o vocábulo zãibo, usado nas aceções de «torto», «estrábico» e «que tem pernas tortas, cambado das pernas, coxo», observe-se que os dicionários consultados (Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, Dicionário Priberam da Língua Portuguesa e Dicionário Houaiss) o registam como variante de zambro, «cambado das pernas». Consignam-se ainda outras variantes: zãibro e zambo.

Pergunta:

Ouço muito as pessoas fazerem uso da locução «fora que» para acrescentar algo.

Gostaria de saber se a norma culta registra essa construção ou se fica só para uso coloquial. Ex.: «Suas palavras não me comovem, fora que já estou ficando chateado com tudo isso.»

Resposta:

É uma locução que a norma culta não aceita. Depreende-se que lhe é atribuído geralmente o valor de «além disso» e «também». Ocorre coloquialmente, como revelam certos comentários registados em páginas da Internet relacionadas com o Brasil: «E o lugar é de porte médio, mas acumula muita sujeira, e os donos são desorganizados, então limpo, organizo e não demora, tudo fica desorganizado novamente. Fora que isso é todo dia antes de eu abrir o estabelecimento» (blogue Espaço do Trabalhador).

Pergunta:

Gostaria de saber se existe em português o correspondente à expressão inglesa frame story, a qual é, de acordo com a Wikipedia em inglês: «A frame story (also known as frame tale, frame narrative, etc.) is a literary technique that sometimes serves as a companion piece to a story within a story, whereby an introductory or main narrative is presented, at least in part, for the purpose of setting the stage either for a more emphasized second narrative or for a set of shorter stories. The frame story leads readers from a first story into another, smaller one (or several ones) within it.»

Traduziria eu assim: «É uma técnica literária que algumas vezes serve como peça associada a uma história dentro de uma história, por meio da qual uma narrativa introdutória ou principal é apresentada, pelo menos em parte, com o propósito de estabelecer o cenário tanto para enfatizar melhor a segunda narrativa como para uma série de histórias curtas. A frame story conduz os leitores a transporem-se de uma primeira história para outra menor (ou várias menores) dentro dela.»

A expressão correspondente a frame story poderia ser «história intercalada»?

Agradeço antecipadamente a gentileza de vossa resposta.

Resposta:

Um termo português equivalente a frame story é «moldura narrativa» (ou narrativa-moldura), pelo menos, no âmbito dos estudos literários e fílmicos produzidos no Brasil, para designar um processo de incorporação de histórias. Há também quem use «relato emoldurado» e «história emoldurada». Contudo, verifico que, em estudos publicados em Portugal, também se usa o termo «moldura narrativa»; exemplo (sublinhado meu): «Em termos formais, podemos distinguir os seguintes agrupamentos, numa ordem crescente de complexidade enunciativa: (1) mito ou fábulas (storytelling como temática); (2) várias histórias introduzidas intradiegeticamente; (3) filmes com uma moldura narrativa (frame story) [...]» (Fátima Chinita, "Metanarrativa cinematográfica: a ficcionalização autoral" in Tiago Batista e Adriana Martins,