Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Será correto dizer «no espaço de um mês», misturando espaço e tempo?  Como sabemos "espaço" mede-se em metros, quilómetros, hectares ou metros cúbicos, conforme estejamos em uma dimensão em 2 ou em 3. Tempo, esse, avalia-se em segundos, anos, séculos.

Resposta:

Nas línguas naturais, o tempo costuma ser interpretado metaforicamente como espaço, o que permite legitimar a expressão «no espaço de um mês». Este uso encontra-se em português, pelo menos, desde o século XVI; e, no século XIX, Almeida Garrett não o rejeitava ao escrever em Viagens na Minha Terra (citado pelo Corpus do Português, de Mike Davies e Michael Ferreira): «Naquele mesmo camarim junto à devota relíquia se conservaram, por espaço de cinco ou seis anos, se bem me recordo do que o bom do pároco nos contou, os restos mortais da senhora infanta D. Maria da Assunção, que falecera em Santarém nos últimos meses da ocupação daquela vila pelas forças realistas.»

Mesmo assim, os mais ciosos da coerência da expressão e da sua congruência com a realidade poderão sempre usar outras expressões: «no intervalo de um mês», «no período de um mês».

Pergunta:

Na frase: «Porque não basta ser amigo, há que saber sê-lo também – prestar atenção, ter o instinto do que é conveniente e amável»*, a forma pronominal lo desempenha a função de complemento direto ou predicativo do sujeito?

* Frase retirada de Conta-Corrente, Nova Série, Vergílio Ferreira, 1993.

Resposta:

Na frase em questão, o pronome o (que ocorre sob a forma -lo, depois de infinitivo) tem a função de predicativo do sujeito.

Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, pp. 340/341) referem-se a o também como pronome demonstrativo que «exerce as funções de objecto directo ou de predicativo, referindo-se a um substantivo, a um adjectivo, ao sentido geral de uma frase ou de um termo dela»; exemplos (ibidem):

1 – «O valor de uma desilusão, sabia-o ela» (Miguel Torga, Novos Contos da Montanha).

2 – «Não cuides que não era sincero, era-o» (Machado de Assis, Obra Completa).

3 – «Seguia-a com o olhar sem me atrever a evitá-lo» (Arnaldo Santos, Prosas).

4 – «Ser feliz é o que importa,/Não importa como o ser!» (Fernando Pessoa, Quadras ao Gosto Popular, n.º 82).

Em 1 e 3, o pronome o tem a função de complemento direto. Em 2 e 4, ocorre como predicativo do sujeito, ou seja, da mesma maneira que se verifica na frase que motivou a pergunta da consulente.

Pergunta:

Em «O João deu-se por quite», a locução verbal «deu-se por» pode ser substituída por «considerou-se» ou «ficou»? Nesse contexto, poderá classificar-se o verbo da frase como copulativo? Ou o facto de «considerou-se» ser um possível sinónimo faz dele um verbo transitivo-predicativo?

Resposta:

A construção «dar-se por...» corresponde efetivamente ao uso de dar conjugado pronominalmente, de maneira igual a considerar-se (cf. Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses, Lisboa, Texto Editores, 2007). Trata-se, portanto, do uso de dar como verbo transitivo-predicativo.

Pergunta:

Creio que é incorrecto dizer: «O povo desfalece de fome pela verdade.»

Correcto é «o povo desfalece de fome da verdade», visto que se diz «ter fome de alguma coisa», e não «ter fome por alguma coisa».

Concordais?

Resposta:

O Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos, de Francisco Fernandes, confirma que o substantivo fome seleciona a preposição de antes de expressões que se refiram ao seu objeto; exemplos (retirados da fonte consultada): «Indicava uma área mais repousada nas extremas do latifúndio, terrenos lavradios com fome de sementeiras» (J. Américo de Almeida, A Bagaceira). O substantivo fome pode também selecionar uma oração de infinitivo introduzida por de: «fome de ganhar» (exemplo retirado da fonte consultada). As abonações do dicionário da Academia de Ciências de Lisboa confirmam o uso da preposição de associado ao substantivo fome, quando a este se atribui o significado de «desejo intenso, ardente»: «A fome de liberdade leva-os a lutar contra a ditadura»; «Mas não gostara nunca de bordar, quanto mais agora com aquela fome de vida que Luís despertara e ainda não saciara!» (Fernanda de Castro, Raiz); «o rapaz tinha vinte e poucos anos, uma grande fome de tesouros [...]» (José Rodrigues Miguéis, Léah).

Pergunta:

Deve-se dizer «prestar contas dos actos» ou «prestar contas pelos actos»?

Resposta:

Usam-se as preposições de e por, com a expressão «prestar contas» (cf. Francisco Fernandes, Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos). O mesmo acontece com «pedir contas».