Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Creio que não é correto o uso de expressões do tipo «um vezes dois é...», «dois vezes três é...», mas, sim, «uma vez dois é...», «duas vezes três é...». Julgo que «uma» e «duas» são quantificadores numerais, os quais variam em género, enquanto adjetivos numerais, e terão de concordar com as formas femininas vez (singular) e vezes (plural). Penso, também, que aquelas expressões não são exatamente a expressão coloquial das expressões aritméticas «1 X 2» e «2 X 3«, nas quais o símbolo X representa a operação aritmética da multiplicação, não sendo sinónimo de vez ou vezes. Ora, vez e vezes significam ocorrências de um fenómeno numérico, é certo, mas não a operação multiplicação, ensinada no decorrer do 1.º ciclo básico do ensino. Além de que «duas vezes três», pode significar uma ideia de adição (uma vez e depois, (+), outra vez, a mesma quantidade), conquanto a multiplicação seja um caso particular da operação adição, definida matematicamente no corpo dos números reais. Finalmente, é evidente que a dúvida não se suscita para outros valores, além de «uma» e «duas», embora seja discutível – aritmeticamente – o recurso a «vezes»: «A multiplica B», ou «o produto de A por B», etc.

Terei razão?

Obrigado.

Resposta:

Do ponto de vista linguístico, tem o consulente razão, porque já Vasco Botelho de Amaral (Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, 1958), referindo-se ao uso de «um vez dois», observava que a forma correta é «uma vez dois». Também Rodrigo de Sá Nogueira, em Dicionário de Erros e Problemas de Linguagem (Lisboa, Clássica Editora, 1989, p. 145), considerava que o uso correto era «[...] "uma vez...", "duas vezes", e não, de modo nenhum, "um vez" e "dois vezes e menos ainda "dois vez" [...]».

Observe-se, porém, que o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa abona o uso de vezes no plural como palavra referente ao operador da multiplicação: «Mat. Designação de um operador de multiplicação, sendo graficamente representado pelo sinal gráfico x. [...] Um vezes três (1x3). Cinco vezes três (5x3).»

Em suma, recomendo «uma vez um, dois, três, etc.» e «duas vezes um, dois, três, etc.», reconhecendo embora que atualmente há quem aceite que a forma «vezes» tem certo uso como designação de um operador matemático.

P. S. – Do mesmo consulente, recebi o seguinte esclarecimento, que agradeço:

«Antes de mais, o meu muito obrigado pela vossa, sempre douta, resposta sobre o tema em assunto, a qual confirmou a minha suspeita. No vosso texto é referido que há quem defenda ser "vezes" utilizado como operador matemático. Estou convencido de que se trata de um ponto de vista sem fundamento académico; atrevo-me mesmo a dizer que não existe qualquer operador matemático com aquela designação. Será certamente uma designação coloquial, popular, facilitadora(?) que se acredita ser mais fácil para as crianças, que se iniciam naquela ciência, apreenderem o conceito da operação de mul...

Pergunta:

Gostaria de saber qual a regra para a formação da palavra gulodice e se gulosice é sinónima.

Obrigada.

Resposta:

A palavra mais aceite, pelo menos, em Portugal e no Brasil, é gulodice, embora gulosice também esteja dicionarizada (Dicionário Priberam, Infopédia, Dicionário Houaiss). Ambas as formas estão atestadas desde finais da Idade Média, e considera-se que gulodice é alteração de gulosice (Dicionário Houaiss). A forma gulosice é um derivado sufixal de guloso (idem).

Pergunta:

Creio que se escreve "olhò" e "vivà" (ex.: «Olhò passarinho!» ou «Vivà Ucrânia!»), aliás sempre que tenho de escrever faço-o desta maneira. Porém, há sempre a estranheza por parte de quem lê e chegam até a dizer-me que não é assim que se deve escrever. Então, gostaria de saber se realmente é assim que se escreve e qual a explicação gramatical.

Fico muito grata se me esclarecerem esta dúvida, pois gostaria de explicar a quem não sabe e eventualmente corrigir quem me tem corrigido.

Obrigada.

Resposta:

As grafias que apresenta só se admitem como reprodução do discurso e da pronunciação populares. O acento grave assinala uma contração vocálica, a da vogal final de uma palavra com a vogal do artigo definido que incia uma expressão nominal («olha o comboio» > «olhò comboio»; «viva a República» > «vivà República»).

O acento grave fica legitimado por formas como comà ou comò (da conjunção arcaica coma, seguida de artigo definido), ou ainda ou còs (da conjunção arcaica ca, seguida de artigo definido), as quais só ocorrem quando se pretende reproduzir a linguagem popular e regional («tomara eu ter amigos "comòs" teus»; «o teu carro é maior "cò" meu»).

Sobre o uso do acento grave nestas formas, ver Rebelo Gonçalves, Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1947, p. 184-188 – trata-se de uma obra associada à norma ortográfica de 1945, mas mantém a sua atualidade). 

Pergunta:

Estou a pensar escrever um pequenito artigo com o título Na Mira do Bacalhau, tendo em conta algumas curiosidades deste ser.

Em termos da língua portuguesa é correcto escrever «Na mira...»?

Obrigada.

Resposta:

A expressão «na mira» está correta e encontra-se registada como subentrada de mira no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa: «na mira de. locução prepositiva. 1 Na esperança de; a fim de. "Saiu na mira de encontrar o amigo." 2. Com os olhos em; no fito de. "Respondeu ao anúncio na mira da recompensa."».

Pergunta:

Gostaria de saber quais as situações em que devemos empregar a preposição «por sobre», e se o correspondente «por sob» existe, se está em uso ou se é aceitável.

Muito obrigado.

Resposta:

As sequências «por sobre» e «por sob» não são preposições, mas, sim, pares de preposições. Com «por sobre», pretende-se marcar a noção de «por cima de um objeto ou de uma superfície, ao longo de toda a sua extensão». Depreende-se que «por sob» signifique «por debaixo de um objeto ou da sua superfície».

A associação de por a sob poderá ser mais rara que «por sobre», porque sob não é preposição com grande frequência, até porque é praticamente parónima de sobre. Contudo, é uma associação de preposições possível e legítima em certos contextos, ocorrendo já em textos menos recentes: «E pela vez primeira, depois de cinquenta anos de aridez, uma lágrima breve escorregou no carão da Titi, POR SOB os seus óculos sombrios» (Eça de Queirós, A Relíquia, in Corpus do Português, de Mark Davies e Michael Ferreira).