Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Existe alguma diferença semântica entre os verbos viver e morar no sentido de residir em determinado lugar ou região?

Considere-se, a título de exemplo, a seguinte frase: «Nos primeiros anos da década de 1990, vivia/morava em Jerusalém por períodos de vários meses.»

Neste caso, será indiferente o emprego de qualquer um dos verbos?

Resposta:

Os verbos viver e morar podem ser considerados sinónimos em alguns contextos nos quais partilham a componente semântica de lugar, o que significa que se constroem com um complemento que tenha um valor locativo, como acontece em (1) e (2):

(1) «Ele vivia em Jerusalém.»

(2) «Ele morava em Jerusalém.»

O verbo morar tem uma significação mais restrita que poderá ser equivalente a significados como «ter residência permanente em determinado lugar»1 ou «ocupar uma casa, espaço habitacional, fazendo dele o seu lar»1. O verbo viver, por sua vez, poderá ser usado com um valor equivalente a morar, com o sentido mais lato de «habitar, alguém, em determinado local, região ou país».

Noutros sentidos, o verbo viver já não será equivalente a morar, quando usado com valores como os indicados abaixo, entre outros possíveis:

(3) «Deve comer para viver.» (apresentar, um ser vivo, as funções vitais que lhe são caraterísticas1)

(4) «Este animal vive, em média, dez anos.» (ter, um ser vivo, determinada duração de vida1)

(5) «Ele vive da agricultura.» (ter, alguém, a sua forma de subsistência em determinada atividade1)

Deste modo, na frase apresentada, os verbos morar e viver podem ser usados como sinónimos com o sentido de «habitar num determinado local».

Disponha sempre!

 

1. Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa (em linha).

Pergunta:

Tenho acompanhado na jurisprudência e na doutrina do Direito utilizarem-se expressões como «não deve ser permitido», «não deve ser exercido» e «não deve sacrificar». Em todas estas situações eu vejo o «deve» a ser utilizado no lugar do «pode», entretanto, venho verificando recorrentemente a utilização de expressões como aquelas tanto em Angola como em Portugal.

A mim incomoda porque aquelas frases ficariam muito melhor construídas com o «pode» («não pode ser permitido», «não pode ser exercido», e «não pode sacrificar»). Aquelas expressões são correctas?

Obrigado.

Resposta:

As construções com o verbo auxiliar dever estão formalmente corretas.

O verbo dever pode ser usado como um verbo auxiliar modal que expressa ou um valor de obrigação (modalidade deôntica) ou um valor de dúvida (modalidade epistémica). Analisemos a frase apresentada em (1):

(1) «A Rita deve abrir a porta.»

Nesta frase, o verbo dever associado ao verbo abrir pode traduzir um valor de obrigação. Neste caso, a frase será interpretada como «A Rita tem a obrigação de abrir a porta.» Em função do contexto, o verbo dever pode também expressar a dúvida, sendo a frase equivalente a «Talvez a Rita abra a porta.»

No caso dos textos jurídicos em questão, é assim possível a leitura do verbo dever com o valor de obrigação.

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase «O vizinho do segundo andar é médico» do segundo andar é modificador do nome restritivo ou complemento do nome? Podem explicar o porquê?

Muito obrigada.

Resposta:

O constituinte «do segundo andar» é modificador do nome restritivo.

A diferença entre os constituintes que desempenham a função de complemento do nome e os que desempenham a função de modificadores do nome está relacionada com o facto de os complementos serem argumentos do nome, ou seja, é o próprio nome que pede um constituinte que o complete. Os modificadores, por sua vez, juntam-se ao nome sem serem por este pedidos. Deste modo, incidem sobre o nome de modo a restringir o seu significado (os modificadores restritivos) ou a acrescentar uma informação (os modificadores apositivos).

Os complementos do nome, à partida, são constituintes que não deveriam ser eliminados da frase, uma vez que completam o sentido do nome. No entanto, este não é um critério de identificação dos constituintes com esta função, uma vez que, na realidade, é possível eliminá-los da frase, ficando esta com um sentido mais vago, como se observa pelo contraste entre as frases (1), onde se destaca o complemento do nome, e (2), sem complemento do nome:

(1) «A fotografia da Rita ganhou um prémio.»

(2) «A fotografia ganhou um prémio.»

O nome vizinho, no caso da frase apresentada, não precisa de um complemento que complete a sua significação, pelo que o constituinte que a ele se junta desempenha a função de modificador do nome restritivo contribuindo para restringir o seu significado de modo a que o sintagma verbal «O vizinho do segundo andar» designe um vizinho específico, o que mora no segundo andar e não os vizinhos que moram nos outros andares. 

Para ajudar à identificação da função sintática de complemento do nome, existem algumas listas de nomes que pedem complemento, que poderão ser consultadas, por exemplo

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem a seguinte dúvida:

Anexa a um texto, que anuncia uma nova coleção de algo, vem uma hiperligação que leva o/a cliente para a página de compra. Essa hiperligação costuma apresentar habitualmente fórmulas como «Comprar a coleção» ou, de forma mais sintética, «Comprar coleção».

Como o que realmente se espera é que o/a cliente compre um ou alguns artigos de toda a coleção (e não a coleção inteira!), seriam essas fórmulas aceitáveis ou estaria mais correto usar uma preposição como, por exemplo, de, do que resultaria uma fórmula como «Comprar da coleção» (ou seja, «comprar parte dum todo»)?

Agradeço, desde já, a vossa resposta!

Resposta:

Com efeito, esta não será a formulação mais adequação ao fim em vista.

A palavra coleção designa uma «reunião de objetos da mesma natureza»1, pelo que um botão com a informação «comprar a coleção» indica que se comprará todas as peças da coleção.

Ora, se o que se pretende é que o cliente compre algumas peças da coleção, a opção poderá passar por expressões como:

(1) «Comprar» (fórmula simplificada, mas suficientemente clara no contexto de compras em linha)

(2) «Comprar + peça disponível» (neste caso, a seguir a comprar indica-se o que está disponível para venda: roupa, fato, ferramenta, etc.)

Se este for o botão de entrada na plataforma onde se encontra disponível a coleção e aí, sim, se identificará a peça a comprar, o botão poderá ter uma informação como «Conhecer a coleção» e a cada peça que se encontra à venda poder-se-á associar o botão «Comprar».

A opção «comprar da coleção» não é aconselhável porque é uma expressão truncada cuja sintaxe é um pouco estranha para a português. A construção de onde esta expressão deriva seria algo como «Comprar uma peça da coleção», pelo que o mais natural seria que se eliminasse o constituinte «da coleção»: «comprar uma peça».

Disponha sempre!

 

1. Dicionário Priberam em linha.

Pergunta:

Há alguma diferença entre as locuções adverbiais de meio e instrumento? Ao meu ver, não! Porém...

Há alguns gramáticos que usam as duas classificações separadamente. Mas... percebi também que existem gramáticos que usam apenas uma ou outra e outros colocam as duas locuções como sinônimas.

Desde já, agradeço aos Senhores pela enorme atenção que sempre tiveram comigo e com todos que procuram saber sobre a Língua Portuguesa.

 

Resposta:

A classe dos advérbios é muito heterogénea e engloba termos com características e comportamentos muito diversos. Esse facto tem dado origem a propostas de organização das suas subclasses muito distintas.

Tal situação justifica o facto de a subclasse dos advérbios de meio ou de instrumento não constar de todas as propostas. Por exemplo, gramáticos como Cunha e Cintra1, Mário Perini2, Rocha Lima3 ou Domingos Cegalla4 não consideram este tipo de advérbios. A própria Nomenclatura Gramatical Brasileira não prevê esta classificação. Já Evanildo Bechara5 considera apenas a existência de advérbios que expressam uma circunstância de instrumento. Esta opção de não distinguir advérbios de meio e de instrumento estará relacionada com o facto de, neste quadro de classificação, o valor das locuções incluídas nesta significação não se distinguir. Assim, em exemplos como os seguintes não se destrinça semanticamente com clareza a ideia de meio usado para fazer algo da ideia de instrumento usado para fazer algo:

(1) «cortar à faca»

(2) «escrever à mão»

(3) «bater com uma flor»

(4) «viajar de avião»

(5) «andar a pé»

Deste modo, a considerarmos a existência de um grupo de locuções que detém comportamento adverbial e que veicula a ideia de instrumento ou meio, estas deverão integrar uma mesma subclasse.

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as gentis palavras que nos endereça. 

Disponha sempre!

 

1. Cunha e Cintra,