Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Devo dizer «os nossos esforços hão-de* resultar», em vez de «haverão de resultar», certo?

Mas não compreendo em que situações devo usar a forma haverão.

 

N.E. O consulente segue a norma anterior ao Acordo Ortográfico 90 na grafia da palavra.

Resposta:

Os valores expressos pela perífrase verbal «haver de + infinitivo» constroem-se sobretudo através da flexão do verbo auxiliar no presente ou no imperfeito do indicativo. 

Assim, com haver flexionado no presente do indicativo, o complexo verbal «haver de + infinitivo» expressa um valor de futuridade e associa-se «a um tempo futuro indeterminado e tem uma forte componente modal, em que se expressa um desejo, uma intenção ou um compromisso»1:

(1) «Os bons tempos hão de voltar.»

(2) «Eu hei de acabar o trabalho a tempo.»

O auxiliar haver usa-se também no imperfeito do indicativo, construindo com o verbo principal uma perífrase que expressa um valor de ordem (atenuada), de um pedido ou de uma sugestão:

(3) «Havias de ir ao banco.»

(4) «Havias de começar a estudar.»

A opção pela flexão do auxiliar no futuro expressa também um valor de futuridade, sentido eventualmente como mais literário. Uma pesquisa no Corpus do Português, de Mark Davies, mostra que não se trata de uma construção frequente, mas é possível assinalar alguns exemplos na literatura:

(5) «Hoje, a mínima espórtula glandular, que os olhos haverão de pagar ao amor sincero [...]» (Fialho de Almeida, Os Gatos II

(6) «Não a olha de frente, já que se teme das feições ...

Pergunta:

A paráfrase é um recurso expressivo/estilístico?

Resposta:

paráfrase não é um recurso expressivo no sentido em que o seu objetivo central não passa, à partida, por explorar a expressividade da linguagem.

A paráfrase é uma forma de intertextualidade que tem como objetivo central reproduzir de forma mais simples e acessível as ideias centrais de um texto-fonte, sem alterar o seu sentido. Há quem se refira à paráfrase como uma «tradução dentro da própria língua».

Disponha sempre!

Pergunta:

A minha dúvida é a propósito da seguinte frase: «Caso fizesses a tarefa, terias nota.»

Gostava de saber se o uso da conjunção caso, nesta frase, é compatível com o verbo no pretérito imperfeito (conjuntivo).

Tenho insistentemente pesquisado a respeito deste assunto; porém o único uso que tenho encontrado como, normativamente, aceitável é: «a conjunção CASO deve ser usada com o verbo no presente do conjuntivo.»

No entanto, tenho visto pessoas a usarem-na, sistematicamente, com o pretérito imperfeito(conjuntivo). Gostava de, por favor, saber se este é um uso particular e, normativamente, reconhecido no Português Europeu. Para terminar, já tentei ler sobre o assunto aqui no vosso repertório, porém não fiquei satisfeito, ou seja, não fiquei esclarecido.

Desde já, agradeço a atenção. Votos de força nesta fase difícil por que o mundo está a passar (COVID-19).

Resposta:

O uso da conjunção caso determina o uso do modo conjuntivo, mas não condiciona o tempo verbal a usar. Na verdade, a seleção do tempo verbal da oração subordinada condicional está relacionado com o tipo de condição que se pretende expressar.

Assim, a conjunção caso pode associar-se à expressão de três valores:

(i) a hipótese real ou genérica (verbo no presente do conjuntivo):

     (1) «Caso venhas a Lisboa, telefona-me.»

(ii) a hipótese possível (com verbo no imperfeito do conjuntivo):

      (2) «Caso pudesses, virias a minha casa.»

(iii) a hipótese irreal ou contrafactual:

      (3) «Caso tivesse vindo, terias visto o espetáculo.»

Agradecemos e retribuímos as gentis palavras.

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase «o professor fez as vezes de aluno», qual a função sintática do termo «as vezes de»?

Obrigado.

Resposta:

O sintagma nominal «as vezes» tem a função de complemento direto.

Nesta frase está presente um verbo leve1 (fazer) que forma com o sintagma «as vezes» um predicador complexo com um sentido equivalente a “substituir”. A locução «fazer as vezes de» apresenta um certo grau de cristalização. No entanto, é possível encontrar situações equivalentes como (1):

(1) «Ele fez o papel de vilão.»

Na frase (1), o constituinte «o papel (de vilão)» tem a função de complemento direto, ocupando o mesmo espaço sintático que o constituinte «as vezes».

Note-se que, embora os verbos leves se associem a sim sintagma nominal não deixam de manter as propriedades de seleção de um verbo pleno pelo que continuam a gerar funções sintáticas.

Disponha sempre!

 

1. Para um maior aprofundamento sobre os verbos leves, cf. Gonçalves e Raposo in Raposo et. al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1214 – 1218.

Pergunta:

Na expressão «patente de produtos», esse elemento preposicionado «de produtos» exerce que função sintática?

Gostaria de saber também se o substantivo patente é concreto ou abstrato. E semelhantes a ele como marca, produto... são que tipos de substantivos: concretos ou abstratos?

Obrigado.

Resposta:

Nomes que designam um produto de atividade intelectual podem pedir um complemento nominal / de nome que corresponde à identificação do seu autor, como acontece com o nome romance em (1), onde se destaca a sublinhado o complemento nominal / de nome:

(1) «o romance de Eça de Queirós»

O assunto ou tópico tratado por essa realidade é também referido por um complemento nominal / de nome:

(2) «o livro sobre a revolução francesa»

O mesmo nome pode, todavia, ser acompanhado de um adjunto adnominal / modificador do nome, que refere uma outra realidade, restringindo a significação do nome:

(3) «o livro azul»

No caso em apreço, um complemento nominal / de nome de patente deveria corresponder semanticamente à identificação do autor do produto patenteado ou à realidade a que foi concedido o título. Como na expressão apresentada, o sintagma preposicional não se integra neste domínio, consideramos que tem a função sintática de adjunto adnominal / modificador do nome.

A classificação dos nomes como concretos ou abstratos é, na ótica da gramática atual, muito discutível porque esta abordagem implica «certos atributos ontológicos cuja relevância gramatical é praticamente nula» (Peres in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 737).

Não obstante, o contexto em que as palavras ocorrem pode definir um maior ou menor grau de concretismo ou de abstração. Assim, se patente for referido como nome de um documen...