Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora
Os provérbios da guerra
As marcas da guerra na língua

«Também no campo da fraseologia, a guerra deixa as suas impressões. Os provérbios expressam, não raro, um saber secular moldado na experiência de vida do povo», escreve a professora Carla Marques neste apontamento dedicado às influencias da guerra na criação de provérbios. 

Pergunta:

O verbo vir é ou não considerado um verbo de movimento?

Parece uma pergunta estúpida mas não é, tendo em conta algumas considerações que já ouvi sobre o mesmo...

Obrigada.

Resposta:

A classificação de vir como verbo de movimento está dependente do contexto de uso em que ele surgir e do significado que for ativado.

Usado com o sentido de «encaminhar-se ou ser transportado (algo ou alguém) de um determinado lugar para (o lugar em que estamos no momento dessa ação, ou para as suas proximidades» (Dicionário Houaiss), o verbo vir é um verbo de movimento com orientação deítica, uma vez que sinaliza um movimento que se orienta de um espaço mais distante para um espaço mais próximo do “eu”:

(1) «O João vem do Porto.»

Há, porém, outros usos do verbo vir nos quais este movimento é tomado de forma metafórica, o que acaba por mitigar este valor:

(2) «a dor vem com a infeção»1

(3) «a tragédia veio de repente»1

(4) «eles vieram com desculpas»1

(5) «a casa viria para as filhas»1

Em casos como os apresentados nas frases (2) a (5), vir não é usado como verbo indicador de movimento, uma vez que os sentidos que ativa na frase são de outra natureza.

Disponha sempre!

 

1. Exemplos retirados do Dicionário Houaiss.

Pergunta:

Qual é o valor expressivo do recurso presente na expressão «nítido ainda, mas esfumado»[1]?

 

[1 A expressão ocorre no conto "George", de Maria Judite de Carvalho (in Seta Despedida, Lisboa, Europa-América, 1995, pp-31-44).]

Resposta:

Se considerarmos que nítido tem o sentido de “limpo, claro; que se distingue bem” (Dicionário Priberam) e esfumado o sentido de “esbatidos os traços a carvão; enegrecido com fumo” (id.), poderemos identificar que na relação entre as palavras tem lugar uma antítese. 

A antítese é um recurso expressivo que «consiste na utilização de dois termos, na mesma frase, que contrastam entre si» (E-dicionário de Termos Literários).

Este recurso permite aproximar termos contrários no sentido de explorar efeitos de sentido a partir desta opção.

Note-se, ainda, que uma interpretação mais funda das intenções associadas à construção estará dependente de um conhecimento mais alargado do contexto em que a expressão é usada.

Disponha sempre!

Pergunta:

Na sequência de frases:

«Inês detesta a vida doméstica. Costurar, bordar e fiar são tarefas que a deixam insatisfeita e revoltada.»

o processo de referenciação anafórica assegurado pela expressão «costurar, bordar e fiar» é anáfora por substituição de holónimo por merónimo, ou anáfora por substituição de hiperónimo por hipónimo?

«Vida doméstica» é holónimo ou hiperónimo?

Resposta:

Na verdade, os verbos costurar, bordar e fiar estabelecem, sim, uma relação semântica dentro da própria frase com o nome tarefas. Esta assenta num processo de coesão lexical entre um hiperónimo (o nome tarefas) e um conjunto de hipónimos (os verbos em questão).

Por outro lado, toda a segunda frase estabelece uma relação com a expressão «vida doméstica», que se coloca ao serviço de uma associação de ideias que contribui para criar um campo semântico que define a vida de Inês. A este processo de coesão lexical dá-se o nome de coesão lexical por contiguidade.

Disponha sempre!

Resistência
Significados de recuperação cíclica

Resistir significa, desde a sua origem «ficar firme», «aguentar». Esses são os sentidos que continuam a ser atualizados em plena guerra entre Rússia e Ucrânia, como recorda a professora Carla Marques nesta sua crónica.