Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

É correto dizer que «bateria» é o coletivo de exames? Pois, quando alguém diz «bateria de exames», dá a entender que a pessoa fará muitos exames e diversos.

Desde já, muito obrigado pelo esclarecimento.

Resposta:

Bateria pode ser usado como nome coletivo, mas não deve ser entendido como referente a um «conjunto de exames».

O nome bateria pode ser usado com o significado de «grande quantidade» (Dicionário Priberam). Neste sentido, é um nome coletivo, uma vez que se aplica a um conjunto de entidades do mesmo tipo. Trata-se, todavia, de um tipo particular de nome coletivo, uma vez que este é tipicamente um nome que pede complemento1. O complemento que a ele se associa virá esclarecer qual a entidade à qual se aplica o valor de “grande quantidade”.

O nome bateria pode, desta forma, combinar-se com diferentes complementos:

(1) «bateria de exames»

(2) «bateria de análises»

(3) «bateria de exercícios»

(4) «bateria de textos»

(5) «bateria de testes»

Por esta razão, não podemos considerar que o nome bateria tenha incluído na sua significação o valor de «relativo a exames». O nome exames é apenas um constituinte que pode assumir a função de complemento de bateria.

Disponha sempre!

 

1. Para um maior aprofundamento sobre a questão de nomes autónomos ou dependentes (i-e., que exigem complemento), cf. Peres in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 742 – 751.

O adjetivo
Funções e significados

A função e a significação dos adjetivos na relação com o nome dá tema à crónica da professora Carla Marques no programa Páginas de Português (Antena 2, 2 de outrubro de 2022).

Pergunta:

As expressões «opta-se pela manutenção...» e «opta-se por manter...» são sinónimas?

Obrigada.

Resposta:

As expressões poderão, com efeito, ser consideradas equivalentes do ponto de vista da significação. Estaremos perante duas possibilidades sintáticas para expressar um valor similar.

Assim, na expressão transcrita em (1), manter surge no interior de um constituinte introduzido pela preposição por, que é regida pelo verbo. Trata-se de uma oração reduzida de infinitivo na qual o verbo assume o valor de “deixar ou ficar em determinada posição ou estado; conservar; defender; observar; guardar” (Priberam em linha):

(1) «optar-se por manter»

Já na expressão transcrita em (2), o sintagma preposicional inclui uma preposição seguida do nome manutenção, que assume valores como “ação ou efeito de manter; administração; conservação; gerência” (idem):

(2) «optar-se pela manutenção»

Pelas razões expostas, podemos considerar as frases (3) e (4) equivalentes:

(3) «O conselho concordou que deve optar-se pela manutenção do grupo proveniente de cada escola.»

(4) «O conselho concordou que deve optar-se por manter o grupo proveniente de cada escola.»

O nome manutenção, em determinados contextos, poderá ter um uso específico que não será equivalente ao que é veiculado pelo verbo manter. Veja-se, por exemplo, que, nas frases seguintes, manutenção tem o valor de «gerência», enquanto manter aponta para o valor de «proteger, conservar»:

(5) «O João sempre sonhou optar pela manutenção da empresa do pai.»

(6) «O João sempre sonhou optar por manter a empresa do pai.»

...

Pergunta:

Qual das duas expressões é a correta:

Chão que piso.

Chão onde piso.

A minha pergunta prende-se com o facto de o verbo pisar não pedir a preposição em, pelo que, a meu ver, a expressão correta deve ser «o chão que piso», uma vez que onde faz sobressair a ideia de lugar em que.

Que é que dizem?

Muito obrigado!

Resposta:

 A construção sem a preposição em é preferível.

De acordo com o Dicionário Houaiss, o verbo pisar tem uso intransitivo (1) ou transitivo direto (2):

(1) «atravessava o terreno calmamente, mas pisava firme»1

(2) «Pisava o chão com convicção.»

Por esta razão, se o verbo pisar surgir numa oração relativa, esta será introduzida pelo pronome relativo sem qualquer preposição a introduzi-lo, como em (3):

(3) «O chão que piso é secular.»

Uma vez que a oração relativa não é, neste caso, introduzida pela preposição em, também não será possível usar o relativo onde para introduzir a oração, como aconteceria em (4) e (5):

(4) «Não esqueço o lugar em que te conheci.»

(5) «Não esqueço o lugar onde te conheci.»

Note-se, não obstante, que Celso Luft1 apresenta possibilidade de o verbo pisar ter um uso transitivo indireto regendo a preposição em. Esta possibilidade é comprovada com usos de alguns autores, à luz dos quais o autor adverte que não se justifica a posição de alguns puristas que rejeitam a construção «pisar em alguma coisa». A aceitarmos este quadro, a frase transcrita em (6) seria possível:

(6) «O chão em que/ onde piso é secular.»

Estou em crer, todavia, que no português europeu esta opção não estará difundida. Quanto à situação do português do Brasil, não temos dados que forneçam uma informação consensual3.

Disponha sempre!

 

Pergunta:

Num dicionário bilíngue italiano–português vem registrada a seguinte locução «tanto che» que apresenta como tradução: «tanto (assim) que» e «de modo que».

A locução «tanto assim que» realmente é registrada na língua portuguesa? E se ela existe, ela se enquadra nas consecutivas?

Faço saber um exemplo do dicionário citado: «Cheguei cedo, tanto assim que ainda não havia ninguém.»

Muito obrigado, desde já, pela resposta dada.

Resposta:

A expressão «tanto assim que» é usada em língua portuguesa em construções de natureza consecutiva e tem registo dicionarístico1.

Numa frase como a que se transcreve em (1), observamos a expressão de uma consequência («não haver ninguém») associada a um grau («chegar cedo»):

(1) «Cheguei cedo, tanto assim que ainda não havia ninguém.»

Esta frase é equivalente à que se apresenta em (2):

(2) «Cheguei cedo, tanto que ainda não havia ninguém.»

A diferença entre ambas as frases está no recurso ao advérbio assim, que, nesta construção particular, tem a capacidade de recuperar a informação da oração / frase anterior: «tanto cheguei tarde que…

Refira-se, ainda, que o uso desta construção não está reduzido ao contexto oracional, uma vez que pode ocorrer em início de frase, retomando uma frase anterior:

(3) «Passou o dia muito ocupada, com inúmeros afazeres. Tanto assim que quando chegou a casa estava muito cansada.»

Disponha sempre!

1. Cf, por exemplo, Infopédia