Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Quero remontar ao ano de 2012, quando foi respondida a dúvida de Daniel Dimas Pelição, em 12 de março.

A questão tratava especificamente de predicativo do sujeito, mas, ao examinar a nota da consultora Eunice Marta, ao final da resposta, ficou-me uma dúvida quanto à concordância verbal e a classificação sintática de sujeito/predicado, quando se inverte a posição dos termos na frase.

Se não, vejamos:

«Amigos é o que não lhe falta» – sujeito: «amigos»; verbo no singular.

«O que não lhe falta são amigos» – sujeito (?): «o que não lhe falta»; verbo no plural.

Pergunto: alterando-se a ordem dos termos, alteram-se-lhes as funções sintáticas, ou seja, o que era sujeito torna-se predicativo, e vice-versa? E assim também a concordância verbal?

Obrigado.

Resposta:

Comecemos por recordar que a posição dos constituintes numa frase copulativa identificadora1 pode ser canónica (sujeito + verbo ser + predicativo) ou inversa (predicativo + verbo ser + sujeito), pelo que a colocação de um constituinte na frase não é sinal de função.

Se atentarmos na frase em análise, verificamos que se trata de uma construção clivada, ou seja, uma construção que permite colocar em destaque um elemento da frase. A frase (1) é, portanto, uma construção clivada equivalente à frase simples (2):

(1) «O que não lhe falta são amigos.»

(2) «Amigos não lhe faltam.»

Na frase (1), o constituinte clivado é o sujeito da frase original, o constituinte «amigos».

Em construções clivadas como a que se apresenta em (1), considera-se que a oração relativa ocupa a posição de sujeito. Assim, o constituinte «o que não lhe falta» é o sujeito da frase, enquanto «amigos» desempenha a função de predicativo do sujeito. Tal como ficou dito no parágrafo inicial, esta frase admite duas ordens, a canónica, na qual se considera que estamos perante uma construção pseudoclivada e que corresponde à frase (1), ou a inversa, que corresponde à construção pseudoclivada invertida2, presente na frase (3):

(3) «Amigos são o que não lhe falta.»

Relativamente, por fim, à questão da concordância, tal como afirmam Martins e Lobo, «quando o constituinte clivado é o sujeito, o verbo ser concorda em pessoa e número com esse constituinte»3. As autoras ilustram este fenómeno com exemplos como os seguintes:

(4) «Quem partiu o vaso foram os rapazes.»

(5) «Quem partiu o vaso foste tu.»

Não obstante, sobretudo no caso da frase (3), muitos falantes aceitam a oscilação entre o singular e o plural,...

Pergunta:

Estou a fazer uma tradução e, com base na máxima «com ferro se mata, com ferro se morre», surgiu-me a seguinte dúvida: posso dizer «matou uma a ferro e outra à fome», ou terei mesmo de dizer «matou uma com o ferro e outra à fome»?

Matar pede a preposição a apenas em frases como «matou à fome», «matou à pancada», «matou à paulada», ou pode ser extensível a outros casos que não encontro na net nem em livros?

Reconhecido pela atenção dispensada, despeço-me com respeitosos cumprimentos.

Resposta:

De acordo com o Dicionário Houaiss,  o verbo matar usa-se como intransitivo (1) ou como transitivo direto (2):

(1) «A fome mata.»

(2) «Ele matou os inimigos.»

Por essa razão também em frases como (3), o constituinte «com ferros» é um modificador do verbo, não sendo a preposição com regida/pedida pelo verbo matar:

(3) «Os homens mataram com ferros.»

Podemos igualmente identificar frases nas quais o modificador do verbo matar é introduzido pela preposição de:

(4) «O trabalho matava-os de tédio.»

Assim, no provérbio «Quem com ferros mata com ferros morre», o constituinte «com ferros» desempenho igualmente a função de modificador, não sendo a preposição com pedida pelo verbo. 

Para além destas construções, podemos também assinalar algumas expressões fixas nas quais o verbo matar é acompanhado por um constituinte introduzido pela preposição a:

(5) «matar à fome»

(6) «matar à paulada/à pancada»

Nas frases (5) e (6) também, não estamos perante um caso de regência. Aqui estamos perante frases feitas, de natureza idiomática, que têm um uso fixo.

Perante o que ficou exposto, é preferível manter a estrutura sintática associada no provérbio e dizer /escrever «matou com ferro» e no outro caso «matar à fome».

Disponha sempre!

Pergunta:

O adjetivo esbulhado pode selecionar a preposição com, reger a preposição com?

«Sentiu-se esbulhado com o que houve.»

E nesta frase:

«O Imperador viu-se esbulhado de reinar com este ato.»

Nesse caso, a preposição com refere-se a que constituinte frasal? Não será igualmente regida por esbulhado como se dá à preposição de?

Muito obrigado ao vosso excelente trabalho!

Resposta:

O adjetivo esbulhado forma-se a partir do verbo esbulhar, pelo que recupera a sintaxe deste verbo.

Esbulhar pode construir-se como verbo transitivo direto e indireto: «esbulhar alguma coisa a alguém», usado com o sentido de «tirar a posse de algum a coisa; privar; espoliar (i. é, privar por fraude ou violência)»1, como em (1):

(1) «Ele esbulhou os proprietários dos seus terrenos.»

Com o sentido de “roubar”, também pode ser usado como verbo transitivo direto (e indireto), como em (2) e (3):

(2) «Ele esbulhou os familiares.»

(3) «Ele esbulhou os terrenos aos proprietários.»

Estas construções permitem usos como:

(4) «Os proprietários viram-se esbulhados dos seus terrenos (por ele).»

(5) «Os familiares sentiram-se esbulhados (por ele).»

Por esta razão, qualquer das frases apresentadas pelo consulente pode ser considerada correta. Percebe-se ainda que o adjetivo esbulhado não rege nas frases apresentadas a preposição com. Na frase transcrita em (6), esbulhado rege a preposição de:

(6) «O Imperador viu-se esbulhado de reinar com este ato.»

O constituinte «com este ato» não está dependente do adjetivo esbulhado, pois relaciona-se antes com o verbo ver. A comprová-lo está a possibilidade de o constituinte pode ser colocado em início de frase, o que não é possível com o complemento de adjetivo («de reinar», neste caso):

(7) «Com este ato, o Imperador viu-se esbulhado de reinar.»

(8) «*De reinar, o Imperador viu-se esbulhado com este ato.»

Pergunta:

Por motivos familiares, convivo frequentemente com brasileiros, todos eles com cursos superiores. Uma das frases que pronunciam repetidamente e que me choca bastante é «deixa eu ver», «deixa eu fazer».

Já tentei explicar que a frase está mal construída. Inutilmente. É de tal forma que até eu já tenho dúvidas!

Estas construções estão efetivamente erradas?

Agradeço os vossos sempre úteis esclarecimentos

Resposta:

Nestas construções, a forma preferível do pronome será a acusativa (me).

A frase em questão é uma forma abreviada que é equivalente, na forma desenvolvida, à frase (1):

(1) «Deixa que eu faça isto.»

Se analisarmos a frase, identificamos uma oração subordinante («Deixa») acompanhada de uma oração subordinada completiva («que eu faça isto»). Nesta segunda oração, está presente o pronome pessoal eu, que desempenha a função de sujeito da forma faça. O pronome assume a forma nominativa (eu) por ser esta a forma típica desta função.

Esta oração subordinada pode ser convertida numa oração reduzida de infinitivo, na qual a forma faça se converte em fazer:

(2) «Deixa-me fazer.»

De acordo com a interpretação de Bechara, em Lições de Português pela Análise Sintática, me desempenha nestas frases a função de sujeito, sendo, segundo o gramático, o único caso em que um pronome oblíquo funciona como sujeito2. O autor apresenta como exemplo a seguinte frase:

(3) «Sabina fêz-me sentar ao pé da filha do Damasceno […]» (Machado de Assis, Mem...

Pergunta:

Recentemente, deparei-me com a seguinte dúvida: «daquele» ou «naquele lado»?

Por exemplo, escreve-se «A mesa fica bem daquele lado da cozinha» ou «A mesa fica bem naquele lado da cozinha»?

A minha intuição diz-me que naquele (em + aquele) seria o mais correto, mas gostava de saber a vossa opinião.

Muito obrigado e continuem com o excelente trabalho do Ciberdúvidas!

Resposta:

O verbo ficar na construção em questão deve ser construído com a preposição em.

Na frase apresentada em (1), o verbo ficar está usado como verbo copulativo com sentido locativo:

(1) «A mesa fica bem naquele lado da cozinha.

Como verbo locativo, ficar contribui para localizar no espaço a entidade referida no sujeito. Neste contexto, a preposição em permite introduzir o constituinte predicativo que tem a função de proceder à localização do sujeito1.

Disponha sempre!

1. Cf, por exemplo, Luft, Dicionário Prático de Regência Verbal. Ed. Ática.