Ana Rita B. Guilherme - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Ana Rita B. Guilherme
Ana Rita B. Guilherme
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Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas-Estudos Portugueses e Ingleses pela Faculdade de Letras de Lisboa; mestre em Linguística Portuguesa pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; investigadora do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Utilizei a expressão «cidade jumelada» e corrigiram-me, pois o correcto será dizer que uma cidade é «geminada com outra». No entanto, eu utilizo com alguma naturalidade a primeira expressão, que poderá parecer uma tradução do francês «ville jumellée», mas digo «casa geminada» e «cidade jumelada». No dicionário não encontro a forma "jumelada", mas em textos da Internet a expressão «cidade jumelada» aparece com frequência. Qual é a forma correcta?

Resposta:

De facto, a palavra "jumelada" não se encontra nos dicionários. Todavia, também a encontrei em vários textos na Internet.

A forma mais correcta será, à partida, o adjectivo geminada pela falta de atestação da palavra "jumelada". No entanto, não quer dizer que no futuro o adjectivo "jumelada" não entre no léxico português.

Sempre ao seu dispor.

Pergunta:

No período medieval, e ainda na Renascença, empregava-se o vocábulo câmara na acepção de «diarreia» e também de «melenas» («câmaras de sangue» = melenas — termo médico).

Qual a origem do vocábulo câmara com este significado?

Obrigado.

Resposta:

De facto, vários dicionários atestam a palavra câmara como sinónimo de diarreia, até mais utilizada no plural, câmaras. Todavia, nenhum dicionário avança com uma explicação para o nome câmara na acepção de «diarreia», «melenas».

Perante a falta de explicação que encontrei, julgo que é necessária uma investigação mais morosa e mais a fundo.

Bibliografia:

Machado, J. P. (1995), Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa;

Morais, A. S. (1858), Dicionário da Lingua Portugueza;

Corominas, J. (1983), Diccionari Etimològic i Complementari de la Llengua Catalana;

Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

Sempre ao seu dispor,

Pergunta:

Qual é a explicação histórica para a existência de formas convergentes e divergentes dentro de uma mesma língua, como o português?

Qual é a importância do conhecimento destas formas para o professor e o aluno da língua materna?

Transpondo estas ponderações para o ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras, qual é a importância do conhecimento de formas convergentes e divergentes para o professor e o aprendiz de línguas aparentadas como o espanhol e o português?

Obrigada.

Resposta:

O acervo lexical do português deriva de duas vias: a via erudita, de pendor literário (latim clássico), e a via popular, que chegou pelo latim vulgar.

Por o português ter no seu léxico vocábulos que chegaram por duas vias, existem na língua palavras divergentes e palavras convergentes. As primeiras derivam do mesmo étimo mas têm uma forma diferente: por exemplo, em português, os substantivos mácula e mancha derivam do étimo latino macula, mas mácula chegou pela via erudita, e mancha, pela via popular.

No que respeita às palavras convergentes, sucede o oposto — são vocábulos que derivam de étimos diferentes mas que se tornaram palavras homólogas em português. Por exemplo, o nome rio deriva de rivu, e o verbo rio deriva de rideo.

Salienta-se que o núcleo lexical do português deriva da via popular, ou seja, a tipologia das palavras portuguesas é altamente marcada pelo léxico que deriva do latim vulgar.

Em relação às outras duas questões que apresenta, estas serão de carácter mais subjectivo. Enquanto professor de Língua Portuguesa será aconselhável ter algum conhecimento sobre esta matéria para poder responder a eventuais questões levantadas pelos alunos; e enquanto aluno de uma outra língua românica, o conhecimento da origem do léxico da língua poderá ajudar a compreender melhor as diferenças entre os idiomas. Todavia, a decisão de aprofundamento desta matéria é pessoal e estará relacionada com os objectivos de cada pessoa.

Bibliografia:

Mattoso Câmara Jr., J. (1975), História e Estrutura da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro.

Sempre ao seu dispor,...

Pergunta:

Eu e um colega meu tradutor temos por vezes algumas discussões sobre o uso das vírgulas. Gostaria de saber se, nas duas frases abaixo que dou como exemplo, é absolutamente imprescindível o uso da vírgula tal como apresentada, ou se esta pode ser dispensada. Se possível, gostaria de saber em que regra gramatical se baseia a vossa resposta.

«Às características estéticas e de design, associa-se um componente tecnológico inovador constituído por uma interface simples e intuitiva.»

«A cada uma das configurações, está associada uma sequência de cor predefinida.»

Obrigada pela atenção.

Resposta:

A pontuação é um sistema gráfico que serve para regular a representação escrita dos aspectos prosódicos da língua, nomeadamente as pausas e a entoação. Além disso, os sinais de pontuação também obedecem a conceitos sintácticos e semânticos, pois a presença ou não de um sinal de pontuação pode tornar a construção agramatical ou até alterar o sentido da frase.

No sistema de pontuação, a vírgula marca uma pausa breve e deve colocar-se nos seguintes constituintes da frase:

i) Modificadores:

«O João, muito atencioso, emprestou-me o livro.»

ii) Predicados secundários não selecionados pelo verbo:

«A Maria, a rir, contou-nos a sua aventura.»

iii) Orações intercaladas

«O professor, dizia-se, conhecia todos os nomes de rios da Península Ibérica.»

iv) Grupos coordenados assindeticamente:

«O Sol, a Lua, as estrelas e os planetas são elementos maravilhosos do universo.»

v) Constituintes antepostos:

«Esse filme, ainda não o vi.»

vi) Orações relativas não restritivas:

«A Rita, que mora em Coimbra, foi estudar para Lisboa.»

As frases que dá como exemplo encaixam-se no ponto v), ou seja, em ambas há um constituinte anteposto, pelo que a presença da vírgula é necessária.

Bibliografia:
Duarte, I. (2000), Língua Portuguesa, Instrumentos de Análise, Universidade Aberta, Lisboa.

Pergunta:

Gostaria de saber como se processou a evolução do significado da palavra embora para que de uma ideia de «em boa hora» derive uma significação de «porém».

Resposta:

De facto, o advérbio embora deriva da expressão antiga «em boa hora». Said Ali explica como esta locução passou a advérbio, constituindo uma unidade com significado próprio (Gramática Histórica da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Melhoramentos, 1965, 5.ª edição, p. 190; mantém-se a ortografia original):

«Tornou-se usual acompanhar a forma imperativa de ir e vir dos votos de bom êxito. Esta noção, compreendida no advérbio embora, desluziu-se da consciência hodierna, que confusamente descarrega nêle o conceito de "afastamento", como se os verbos não dissessem já a mesma cousa. [...]»

No que respeita ao uso de embora como conjunção concessiva, Said Ali (ibidem) acrescenta:

«Não se usou êste advérbio sòmente para augurar bem ou desejar hora propícia às empresas humanas. Introduziu-se também em orações optativas e outras para denotar que se concede a possibilidade do fato, ou que o indivíduo que fala não se opõe ao seu cumprimento. Da alteração semântica dão testemunho os seguintes passos:

[...] Honrem-se embora com essas arvores os seus montes, que os nossos valles não hão mister quem procure a sua exaltação ([Vieira, Sermões], 5, 360) [...]

[...] Desta prática veio o transformar-se, em português hodierno, o advérbio embora em conjunção concessiva, mudando-se naturalmente a contextura das orações. A principal passou a servir de subordinada, e a correlata despe-se da partícula que, convertendo-se em principal, dizendo-se