Ana Martins - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Ana Martins
Ana Martins
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Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – Estudos Portugueses, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e licenciada em Línguas Modernas – Estudos Anglo-Americanos, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Mestra e doutora em Linguística Portuguesa, desenvolveu projeto de pós-doutoramento em aquisição de L2 dedicado ao estudo de processos de retextualização para fins de produção de materiais de ensino em PL2 – tais como  A Textualização da Viagem: Relato vs. Enunciação, Uma Abordagem Enunciativa (2010), Gramática Aplicada - Língua Portuguesa – 3.º Ciclo do Ensino Básico (2011) e de versões adaptadas de clássicos da literatura portuguesa para aprendentes de Português-Língua Estrangeira.Também é autora de adaptações de obras literárias portuguesas para estrangeiros: Amor de Perdição, PeregrinaçãoA Cidade e as Serras. É ainda autora da coleção Contos com Nível, um conjunto de volumes de contos originais, cada um destinado a um nível de proficiência. Consultora do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa e responsável da Ciberescola da Língua Portuguesa

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Tendo em conta o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, nomeadamente a redação da base XV, «Do hífen em compostos...», n.º 1.º e observação, será correto que «vira-casaca» vire «viracasaca»?

Resposta:

Escreve-se (continua a escrever-se) vira-casaca.

O texto do Acordo tem formulações evasivas1 e terminologia considerada, pelos estudos em morfologia, inadequada e ineficiente.2

Por isso, a melhor opção para quem escreve é consultar guias e vocabulários ortográficos credíveis, que sejam já o resultado da ponderação/avaliação correcta das formas — na medida em que o texto do Acordo o permite.

Sugestão: Vocabulário de Mudança – Acordo Ortográfico (1990), do ILTEC. Procurar também alguns guias na nossa Montra de Livros.

1 «certos compostos em relação aos quais se perdeu, em certa medida, a noção de composição» (Base XV, n.º 1 - obs.)

2 É o caso do termo «justaposição». Leia-se a propósito:« Esta distinção [justaposição, aglutinação] baseia-se no facto de a estrutura fonológica dos compostos conter ou não conter fronteiras de palavra. A ausência de fronteiras de palavra é, no entanto, o resultado de uma transformação progressiva e gradual, dependente da evolução do valor referencial do composto.» (Gramática da Língua Portuguesa, Ed. Caminho, 2003: 980)

Pergunta:

Gostava de saber como é que se classifica a seguinte frase:

«Os seus cabelos negros brilhavam ao sol.»

Quais são os complementos circunstanciais presentes nesta frase. Como é que os podemos classificar? Complemento circunstancial de tempo, modo, causa, lugar, etc.

Obrigada pela atenção dispensada.

Resposta:

O constituinte «ao sol» é, de acordo com a gramática tradicional, um complemento circunstancial.

As opções que a consulente invoca — complemento circunstancial de tempo, modo, causa, lugar — são, na verdade, subclassificações semânticas e, por isso, dependentes da interpretação que a frase pode aceitar. Recorrendo à paráfrase:

«Os seus cabelos brilhavam ao sol» = «por acção do sol» (i) e, portanto, «intensamente» (ii),

vemos que «ao sol» transporta (i) a ideia de causa e (ii) a ideia de modo.

Ambas as subclassificações são aceitáveis, portanto.

Nota: de acordo com a TLEBS/Dicionário Terminológico (disponível desde Janeiro de 2008) trata-se simplesmente de um modificador (do grupo verbal). Esta é uma classificação puramente sintáctica.

 

Pergunta:

Ouvi, na televisão, o presidente de uma junta de freguesia dizer algo como «se a situação temporal se mantiver», referindo-se ao tempo excepcionalmente frio.

Está correcta a palavra temporal, ou devia ter dito climatérica?

Resposta:

1. Tempo e clima pertencem ao mesmo campo lexical relativo a «condições atmosféricas». Neste âmbito, tempo designa «condição transitória»; clima, «situação inerente e durativa»:

(i) «Qual o clima da Papua-Nova Guiné?»
(ii) «Que tempo faz aí agora?»

2. Considerando as formas derivadas (adjectivos denominais), temporal e climático/climatérico, verificamos que temporal já não pertence a esse campo lexical, ou seja, nunca designa uma qualificação que se prenda com «estado atmosférico». Temporal significa (i) temporário, passageiro; (ii) mundano, secular; (iii) temporal pode ser também um termo gramatical (conjunção/oração temporal).

Cf. O que é verdade e mito nos provérbios populares sobre o clima

Pergunta:

Depois de ter pesquisado em perguntas anteriores, continuo com dúvidas acerca do seguinte:

Na frase «(...) não podendo defender-se, se deixou cair daquelas alturas dum quinto andar ao fundo do saguão» (de Raul Brandão — Portugal Pequenino), a expressão «ao fundo de» poderá ser classificada como uma locução prepositiva?

Obrigada pela vossa disponibilidade.

Resposta:

1. Na frase:

(i) «O Zé colocou o jarrão ao fundo da sala, ao lado da Vénus de Milo»,

«ao fundo de» e «ao lado de» são locuções prepositivas.

Locução prepositiva ou preposição composta. Esta equivalência terminológica deve-se ao facto de a locução ser funcionalmente equivalente à preposição simples, ou seja, não é possível fazer a análise ou a decomposição dos elementos que integram a locução e tratá-los como unidades autónomas. Especificamente: a palavra fundo deixa de funcionar categorialmente como nome e é absorvida por uma unidade funcional que, como um todo, serve para ligar dois termos da oração (a função das preposições/locuções preposicionais).

2. Não é isso que se passa com a frase em apreço.

Confrontemos

(ii) «deixou-se cair/caiu de um quinto andar ao fundo do saguão»

com 

(iii) «Caiu do/desde o topo ao/até sopé do monte.»
(iv) «Caiu do quinto andar para o rés-do-chão.»
(v) «Foi de Lisboa ao Porto.»

(vi) «Foi da Luz ao Estádio do Dragão.»

Cair, tal como ir, é um verbo de movimento, que tem dois complementos (complementos oblíquos) realizados por sintagmas preposicionais, ou seja, sintagmas que têm como núcleo uma preposição: o primeiro complemento tem como núcleo a preposição de, o segundo complemento tem como núcleo a preposição a. O facto de a proposição de poder comutar com desde, assim como a poder comutar com até ou para, prova que a é um constit...

Pergunta:

A forma perifrástica é constituída por um verbo principal, no infinitivo ou no gerúndio, e um verbo auxiliar, no tempo que se quer conjugar. Por isso, gostaria de saber se está correcto dizer-se «vou ir», sendo que se trata de um pleonasmo.

Resposta:

1. A expressão da posterioridade da acção em relação ao momento da enunciação (a expressão de um tempo futuro) raramente é expressa pelo futuro simples. Domina o futuro perifrástico (i) ou o presente futural (ii):

 

«Hei-de ir ao médico.»
«Vou ao médico.»

2. Não há nenhuma ocorrência de «vou ir» no padrão do português europeu. Não podemos concluir, todavia, que tal se dá por estarmos em face de um pleonasmo: vou indo não é rejeitado como sendo um pleonasmo, da mesma maneira que vou vir não é sentido como uma contradição.

Porquê? Porque, tal como o consulente referiu, o verbo ir da primeira posição é um verbo auxiliar, ou seja, um verbo que sofreu um processo de gramaticalização. Falamos de gramaticalização quando uma palavra de significação objectiva se apresenta com uma significação gramatical ou, digamos, instrumental.

Na frase:

«Vai formosa e não segura/Leonor pela verdura», o verbo ir é um verbo pleno, significa «deslocar-se para um lugar distante do locutor».

Já na frase:

«Leonor vai tropeçando aqui e ali», o verbo ir transporta informação gramatical (aspectual, de visão prospectiva da acção).

Repare-se, a propósito, que as construções abaixo não são consideradas pleonásticas:

 

«Vou dirigir-me a»
«Vou deslocar-me a»

O mesmo se passa com «ia a ir»:

«Quando ia a ir para a fonte, Leonor torceu o tornozelo.»

3.<...