Na SIC, canal de televisão português, uma jornalista convida a «fazer de “trugalheiro” da língua portuguesa». Promete-se uma “Viagem pela Língua Portuguesa”, com imagens de um antigo mapa do Reino que entrecortam outras de gente — idosa, na maioria — que vive em campos, aldeias, vilas e cidades do que é hoje uma república. A ideia é ilustrar em cerca de cinco minutos a diversidade do português de Portugal, com a apresentação de regionalismos como borrona («caneta», em Trás-os-Montes), morcão («pessoa aparvalhada», sobretudo no Porto), andar à porra e à massa («andar na zaragata», Alto Alentejo), abelha («táxi», Madeira) ou correr roupa («passar a ferro», São Miguel, Açores).
Reconheça-se, a promessa é cumprida, quando pensamos que o tempo escasseia, e o grande público é o alvo. Não admira, por isso, que se encontre o que se espera: música de fundo «ó malhão, malhão», e uma que outra boca desdentada a deixar escapar a vergonha perante as câmaras. Haverá só esta maneira de revelar a diversidade linguística de Portugal?
Seja como for, há alguns reparos a fazer quanto ao significado, à área geográfica e à forma de alguns dos regionalismos apontados:
1. Trogalheiro, «bisbilhoteiro» (Portalegre, Alto Alentejo).
Na reportagem, este termo é grafado “trugalheiro”. A verdade é que os dicionários (Houaiss e Grande Dicionário, da Porto Editora) apresentam as formas trogalho, trongalho ou torgalho, «atilho, cordão», «indivíduo desajeitado», e trogalheira ou trongalheira, «mulher desajeitada» e, no Alentejo, «alcoviteira», provavelmente no sentido de «bisbilhoteira» (Vítor Fernando Barros e Lourivaldo Martins Guerreiro, Dicionário de Falares do Sul, Campo das Letras). Escreve-se com o na primeira sílaba, porque se aceita que apalavra remonta ao latim *torquaculu-, de torquere, «torcer, torturar, atormentar» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa).
De observar que «fazer de trogalheiro da língua portuguesa», como a jornalista diz, soa algo forçado. Não seria preferível «faça-se trogalheiro e desvende a língua portuguesa»? É que não se é «trogalheiro de qualquer coisa» — é-se trogalheiro, simplesmente.
2. Malga e cajado são transmontanismos?
Malga não é um termo característico transmontano, porque se usa um pouco por toda região norte. Um cajado tampouco é típico de Trás-os-Montes. Diga-se ainda que esta palavra não significa o mesmo que vara e bengala: trata-se, como define José Pedro Machado (Grande Dicionário da Língua Portuguesa), de um «bordão de pastor, com a extremidade superior feita em meia volta».
3. Um texto, «conjunto de palavras; trecho», não é um testo, «tampa».
Em grande parte de Portugal, a tampa de um tacho é um testo, que se escreve com s, porque remonta ao latim vulgar testu-, «tampa de barro», «vaso de barro». A palavra texto designa, como se sabe, outra coisa, e tem outro étimo: textu-, «narrativa, exposição», do verbo texo, is, ere, xui, xtum, «tecer, fazer tecido» (cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa).
4. Griséus, «ervilhas» (Algarve).
Na reportagem aparece a grafia “grezeús”, mas a forma mais correcta é griséus, «ervilhas», podendo o i pronunciar-se como e mudo nos falares algarvios por se encontrar em posição átona. Escreve-se com s, porque se supõe que o termo está relacionado com gris, «acinzentado» (apesar de não ser este o tom do legume em questão; cf. José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa).