Corria o ano de 2004 quando o polemista Vasco Graça Moura se lembrou de dizer que «os linguistas têm ódio à literatura» (Pública, 1/02/04), julgando assim assinar o divórcio de uma separação de facto entre estudiosos da língua e especialistas em literatura.
Separação impossível: o texto literário é um exercício de linguagem que activa todas as potencialidades do uso da língua como instrumento de conhecimento, arte, jogo e poder; a literatura amplifica e explora esteticamente modos de funcionamento do sistema da língua. Todos os critérios destinados a marcar a linha divisória entre texto literário e texto não literário podem ser postos em causa. É a intenção de produzir uma representação verbal artística, dizem uns. Mas tal não é válido para a literatura oral/popular/de cordel, nem, por exemplo, Fernão Mendes Pinto quis fazer uma obra de arte quando escreveu Peregrinação. O texto literário tem marcas gramaticais distintivas (figuras de estilo), dizem outros. Então, nesse caso, é preciso medir o grau de presença dessas marcas no texto, porque há reportagens que reúnem muitos mais requebros de linguagem do que uma colecção inteira de romances neo-realistas.
Vêm estas reflexões a propósito do discurso do secretário-geral do PCP — mais elaborado, já em período pré-legislativas: há a adjectivação — «dinâmica agressiva, exploradora e predadora do sistema» (9/05/08, Lisboa, jantar com activistas sindicais); há as metáforas abundantes — «aqueles que semeavam a resignação… três anos de agravamento das chagas do desemprego e do trabalho precário» (ibidem); há a antonomásia — «grandes cadeias de distribuição dos Belmiro, Jerónimo Martins e outros» (20/06/08, Guarda, Assembleia Regional); e há a imagem: «os poderosos amassam o lucro, enquanto alarga a mancha da pobreza» (25/05/08, Baleizão).
Pura arte da palavra.
Artigo publicado no semanário Sol de 29 de Junho de 2008, na coluna Ver como Se Diz.