No noticiário da RTP 1 da manhã de 8 de Julho, a certa altura as notícias centraram-se nos manuais escolares gratuitos para o ensino obrigatório em Portugal (obrigatório é uma palavra mal escolhida, mas passemos adiante). Para sossego de muitos telespectadores, referiram que os famosos vouchers já tinham sido emitidos. Que os pais já podiam obter gratuitamente os livros nas livrarias, pois já não havia vouchers por entregar, que os vouchers estavam regularizados, vouchers para cá, vouchers para lá. Como se voucher fosse a palavra mais banal do mundo.
Por incrível que pareça, numa língua tão versátil e diversificada em riqueza vocabular como a nossa, não encontraram melhor palavra do que esta. Dá impressão de que não temos talão, vale, vale-livro, cheque-livro, talão de livros escolares, vale-educação, talão escolar, por aí fora. Já se adivinha alguém a dizer que os termos portugueses não servem, pois talões há muitos, vales há muitos, por isso escolheram voucher. Mas vouchers também há muitos: para livros, para viagens, para acessos a recintos e eventos, para espectáculos, para experiências turísticas exóticas, para hotéis, para serviços de saldos, para restaurantes, etc., etc.
É certo que há casos, bastante raros, em que não existe a palavra adequada em português, ou, existindo, não produz o mesmo efeito, nem é completamente equivalente. Há situações em que pura e simplesmente ainda não temos palavra ou termo adequado. Temos o caso do abat-jour, não totalmente substituível por anteparo, pára-luz ou tapa-luz. E o problema não é exclusivamente português. Em França, houve quem quisesse substituir o curtíssimo anglicismo air-bag por um termo equivalente na língua de Molière. Depois de longas e retorcidas deambulações linguísticas saiu o longuíssimo sac gonflable à haute sécurité. Mas isto não significa que se pare de pensar e que por dá cá aquela palha se atire com um estrangeirismo bicudo e desnecessário para cima da mesa, ou para os olhos e ouvidos dos leitores e telespectadores.
Até já se anunciam títulos destes nos jornais:
"Plataforma Mega já está a emitir vouchers para atribuição de manuais de ensino".
Ou:
"Vouchers para manuais escolares gratuitos disponíveis já esta terça-feira".
Aparentemente, o voucher está banalizado, mas a mim parece-me um termo com pêlos eriçados, que custa a engolir neste contexto. Será que Ministério da Educação e os media portugueses querem usá-lo para parecer mais chique? Mais moderno? Mas acontece o contrário. Soa a pobreza vocabular, ecoa a pedantismo, transpira vaidade saloia, transborda de deslumbramento pacóvio perante a palavra estrangeira.
Mais alguns exemplos, a título de nota de rodapé:
"Vouchers para manuais gratuitos já esta terça-feira... mas só para alguns"
"Vouchers para manuais escolares gratuitos disponíveis já esta terça-feira"
"Manuais Escolares Gratuitos Tudo o que precisa saber sobre os vouchers MEGA"
"Pais queixam-se de não terem recebido vouchers para levantar livros escolares"
"MEGA Manuais Escolares Gratuitos – O sítio oficial para pedir os manuais"
[Nota: O autor não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.]
N.E. – É o caso, igualmente, do portal MySNS, como assinalou na página do Facebook do Ciberdúvidas o consulente Vitor Madeira: «Então e a aplicação para telemóveis "MY SNS"...? Uma aplicação portuguesa, paga pelo Estado português, para ajudar cidadãos portugueses a contactar com o Serviço Nacional de Saúde...Tinha que se chamar "MY"? (Inglês para "minha" – lê-se "mái"). Martelada pacóvia carregadinha de vaidade saloia até "dizer chega".»