A linguagem literária permite liberdades estilísticas que a linguagem referencial, assente na norma, não aceita. As escritas dos porventura dois mais representativos escritores da nossa contemporaneidade, José Saramago e António Lobo Antunes, são, aliás, disso bons exemplos. E ainda bem que assim é, pois só assim a língua se recria, se reinventa, se enriquece. Pessoalmente, leio com grande prazer os textos de um e de outro.
António Lobo Antunes introduziu na sua obra, em 2003, as edições ne varietur, ou seja, com o texto fixado por um filólogo e autorizado pelo autor. Acabei há algum tempo de ler a obra Sôbolos rios que vão e constatei, por várias vezes, a elisão do sujeito pela contração indevida dos artigos a/as/o/os com as preposições da/das/do/dos, por exemplo em:
«[…] recordou-se da [em vez de a] mãe acariciar o gato até que a respiração cessou […]» (p. 39)
«[…] e o modo como a areia brilhava antes das [em vez de as] gaivotas chegarem […]» (p. 39)
«[…] e a vinha ora roxa ora verde, qual o motivo da [em vez de a] vinha continuar lá em baixo […]» (p. 75)
«[…] até muito depois do [em vez de o] fumo desaparecer […]» (p. 116)
«[…] depois do [em vez de o] avô morrer […]» (p. 170)
«[…] não há maneira do [em vez de o] palerma entender […]» (p. 191)
«[…] e ele com receio dos [em vez de os] colegas lhe chamarem bebé […]» (p. 195)
Nos casos referidos, a preposição está relacionada com o verbo e não com o substantivo e introduz uma construção com infinitivo (acariciar, chegarem, continuar, desaparecer, morrer, entender, chamarem), razão pela qual a contração não pode ocorrer.
Há obviamente ao longo da obra muitas outras frases com construções semelhantes às acima transcritas em que não se faz aquela contração e o sujeito não é elidido. Nem faria tal referência se não se tratasse de uma edição ne varietur, com revisão filológica. Sendo-o, era exigível maior rigor.