«Hoje, desaparecido o filtro da revisão, verifico que nem nos chefes directos se pode confiar porque, com frequência, são eles que introduzem erros na notícia.»
Ler e ouvir diariamente os media portugueses é um exercício penoso, tantos são os erros de linguagem, escrita ou falada.
Ouvir dizer, durante a greve dos motoristas, que o governo «decidiu racionalizar os combustíveis» ou que a situação era melhor "kóke sesprava"[1] não é muito diferente de ver traduzido, na legenda de um filme, safe house (casa segura para espiões) por «casa do cofre».
Que um alegado repórter de televisão anuncie a detenção do «único e principal suspeito» já nem me faz pestanejar porque a cadência da asneira é marcada, muitas vezes, ao minuto.
Sempre houve, nas redacções, quem cometesse erros gramaticais de todo o tipo, mas que eram corrigidos pelos editores, ou, se escapassem nesse crivo, pelos atentos e competentes revisores.
Hoje, desaparecido o filtro da revisão, verifico que nem nos chefes directos se pode confiar, porque, com frequência, são eles que introduzem erros na notícia. O conhecimento das técnicas de produção de um jornal permite identificar a origem do erro, quando ele aparece numa chamada ou no título e está em contradição com o corpo da notícia.
O problema mais sério não está nas gralhas ou nos erros gramaticais simples, embora a sua densidade não deixe de ser motivo de preocupação. O pior é a ocorrência constante de erros culturais, que contribuem para a perda de credibilidade dos media.
Numa sociedade cada vez mais alfabetizada e culta, o sentido crítico do público é exercido com rigor e sem piedade. Perante um erro cultural crasso, o cidadão pergunta-se: «Se eles não sabem isto, como posso confiar no que dizem?». Deixo abertas ao exercício da imaginação as possíveis consequências desse juízo.
Tudo isto vem a propósito de um incidente, na Polónia, com um grupo de pessoas atingidas por um raio durante uma trovoada.
O Público e o Jornal de Notícias referem, em título, que um raio matou quatro pessoas. Mas o Correio da Manhã inventa uma causa nunca vista: uma «tempestade de relâmpagos». Que raio de base de dados tem o jornalista na cabeça para transformar uma simples trovoada numa «tempestade de relâmpagos»?
Lá estará o cidadão a interrogar-se: se eles não sabem o que é uma trovoada…
[1 N.E. – Com transcrição «kóke que sespreva», o autor procura reproduzir uma maneira de pronunciar e uma construção normativamente não aceitáveis, pois as formas mais corretas são «melhor do que se esperava» e «melhor que o que se esperava». Observe-se, porém, que o caso de "kóke" indicia a conservação de ca – melhor ca o que se esperava –, partícula da língua medieval, que ainda hoje se conserva no português popular e regional (ver comentário a ca, termo arcaico e popular, no Vocabulário da Língua Portuguesa, que Rebelo Gonçalves publicou em 1966). O português contemporâneo rejeita o uso desta partícula em contextos formais, escritos ou falados.]
Texto publicado na página do Clube dos Jornalistas no dia 24 de agosto de 2019, conforme a norma anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.