I.
Era uma vez uma borboleta cuja avó morrera, há muitos anos, com um ataque de tosse, depois de ter engolido um acre, muito acre dente de alho. A partir dessa altura, a expressão não confundir alhos com bugalhos popularizou-se entre todas as famílias papilionáceas.
A mariposa Karingana – assim se chamava esta borboleta – viveu em Tânger durante a sua infância, com a mãe e as tias, que nessa época eram conhecidas como as meninas tangerinas.
As asas de Karingana foram crescendo, crescendo e o seu desejo de liberdade aumentando, aumentando. Um dia, pensou percorrer todo o continente africano de norte a sul. Como a maioria dos insetos da sua família, voava de dia e repousava à noite. Para se alimentar, procurava o néctar das mais belas flores, que sugava com uma espécie de minúscula tromba.
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Ao passar por Angola, viu, na montra de uma livraria da capital, o livro Luuanda de Luandino Vieira – e ficou deslumbrada com o fruto que estava na capa deste livro: um grande, rubro e suculento caju. Sorrateiramente, entrou na livraria e, poisando sobre o caju sem que ninguém a visse, foi sugando o seu sumo, sugando, sugando, até que o caju, mirrando, mirrando, desapareceu da capa do Luuanda.
Ao ter tido conhecimento deste fenómeno tão estranho, Luandino Vieira resolveu escrever um novo conto, que intitulou “História da borboleta e do caju” e que passou a incluir nas novas edições de Luuanda…
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Depois desta aventura luandina, a menina Karingana rumou a sul e entrou em Moçambique pela província de Tete, voando sempre sobre o grande e misterioso rio Zambeze. Quando chegou à sua foz, já na província da Zambézia, encontrou a cidadezinha do Chinde, onde, em 1910, nascera um escritor lusófono que, ainda criança, partira para Angola, onde passou parte da sua juventude.
Então, resolveu voltar a Angola, para ver se encontrava esse escritor, que vivera com os seus pais na província da Lunda, situada no nordeste de Angola. Como esta província possuía ricas minas de diamantes, ela conseguiu recolher três destas brilhantes pedrinhas preciosas e escondeu-as nas suas asas.
Ao passar pelo lugarejo de Camaxilo, contaram-lhe que o tal escritor lusófono, que nascera no Chinde, tinha partido para Portugal, onde fora perseguido pela PIDE, por causa dos livros que escrevia, um deles justamente intitulado Terra Morta. Soube depois que o dito escritor teve de fugir para França, mas como também ali a PIDE o vigiava discretamente, o seu amigo e correligionário José Cardoso Pires acompanhou-o até ao norte de França e, na cidade do Havre, viu-o partir de barco rumo ao Brasil.
Karingana lembrou-se, nesta altura, do poema de Manuel Bandeira “Trem de ferro”, que a sua mãe e as suas tias costumavam recitar, quando viviam em Tânger, dizendo: “Um dia, havemos de ir ao Brasil”. Mas como agora a nossa mariposa queria prosseguir o seu périplo africano, desistiu da ideia de continuar à procura do tal escritor lusófono que partira para o Brasil nos anos sessenta do século passado.
II.
Depois da estadia no Chinde, Karingana passou pela Beira e lembrou-se: “Aqui nasceu o meu amigo Mia Couto. Estará ele ainda cá?”
Cansada de tanto voar, começou a imaginar: «E se agora eu apanhasse um aviãozito até Maputo? Não seria má ideia...»
Então, ao dirigir-se ao aeroporto da cidade da Beira, sentiu-se sem forças e, quase moribunda, poisou no alcatrão da pista dos aviões. Ali ficou largos minutos quase desfalecida. Eis senão quando, um menino que se dirigia para o avião, pela mão da sua mãe, a viu gemendo e tiritando de frio. O garoto parou a observar o colorido lepidóptero e pensou que o bicho poderia vir a ser esmagado pelos pés dos outros passageiros que se apressavam para apanhar o voo Beira-Maputo.
– Mãe, posso levar a borboleta? – perguntou o petiz.
– Tu és parvo ou quê? – respondeu-lhe a mãe secamente.
Quando Karingana viu passar o ilustre escritor Mia Couto, que também ia viajar para Maputo, e de quem ela era amiga há muito, pois tinha conhecido o autor de Estórias Abensonhadas numa conferência sobre entomologia, fez um esforço hercúleo para levantar voo e foi poisar na manga do seu casaco. Mia Couto recolheu-a e guardou-a no bolso do casaco.
Já no avião, o tal menino, agora murcho como um acento circunflexo1, choramingava no seu assento, ao lado da impassível mãe. Mia, do seu lugar, fez-lhe um sinal. Então, em seu rosto se acendeu a mais grata bandeira de felicidade1, quando viu a mariposa Karingana espreitar do bolso do casaco do escritor.
Desta maneira e sem despender grandes esforços, Karingana chegou a Maputo, agradeceu ao escritor a boleia e, já refeita da fadiga, ergueu as asas e levantou voo.
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A nossa mariposa não conhecia a bela cidade de Maputo. Foi percorrendo as suas avenidas, bordejadas de vistosas acácias vermelhas e de belos jacarandás azuis, onde se deliciou com o canto das cigarras, nas horas mais quentes do dia.
Ao fim de uma das tardes da sua estadia na capital moçambicana, voltou a encontrar Mia Couto, que a convidou para assistir a uma festa de homenagem ao poeta José Craveirinha, nos dez anos da sua morte. Quando ouviu alguém recitar o poema “Eu sou carvão”, comoveu-se profundamente. Mia Couto apresentou-a ao escritor Luís Bernardo Honwana, que ali também se encontrava para prestar a sua homenagem ao seu querido amigo Craveirinha.
Vaidosa como era, ao ver a colorida capa de Nós matámos o cão tinhoso, poisou sobre ela para lhe sorver todas as cores e ficar ainda mais colorida do que já era. Luís Bernardo Honwana não achou muita graça ao sucedido e resolveu, então, à laia de aviso, colar uma pequena folha branca sobre o seu livro, com os seguintes dizeres: «Não roubem as minhas cores, leiam os meus livros!»
Karingana compreendeu a intenção do escritor e decidiu, então, ler todo o livro, enquanto decorria a homenagem a José Craveirinha. Gostou tanto do conto “As mãos dos pretos”, que foi poisar nas mãos de Luís Bernardo Honwana, beijando-as ternamente...
III.
Nesta altura, lembrou-se dos três diamantes que trouxera das minas da província angolana da Lunda. Para agradecer todas as gentilezas que ia recebendo, resolveu oferecer um dos diamantes a Mia Couto e outro a Luís Bernardo Honwana. Guardou o terceiro para uma homenagem que ela projetava fazer a um poeta que morrera muito novo, no trágico acidente de aviação que vitimara, igualmente, o primeiro presidente de Moçambique independente, Samora Machel, em 1986.
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Dias depois, voava ela pelos bairros da cidade de Maputo, quando viu um menino gordo, gordo, gordo, a soprar num balão amarelo, amarelo, amarelo. Como adorava esta cor, poisou em cima do balão amarelo e sugou-lhe toda a cor, até que o balão, pálido, pálido, pálido, rebentou de anemia. O menino furioso, furioso, furioso, deitou-o fora e meninos magros apanharam os restos / e fizeram balõezinhos2.
– Agora estou satisfeita – dizia ela. – Fiz a minha homenagem pessoal a José Craveirinha e, em sua honra, vou começar a assinar o meu nome assim: Karingana wa Karingana.
Antes de terminar a sua estadia em Moçambique – essa imensa varanda sobre o Índico, como lhe chamou Eduardo Lourenço – a nossa Karingana viajante passou pelo cemitério, para fazer mais duas homenagens. A primeira foi ao poeta que, na sua obra Moçambicanto, escrevera: Ó pátria, moçambiquero-te. Foi, pois, na campa de Gulamo Khan que ela deixou o seu terceiro diamante – e tão brilhante era ele, que o poeta, lá do outro mundo, lhe fez um pequeno e luminoso sinal de agradecimento, dizendo: Kanimambo, kanimambo.
A segunda homenagem foi ao poeta Reinaldo Ferreira, que tinha morrido em 1959, na então Lourenço Marques. Junto à sua campa, começou a recitar estes belos versos:
Quero um cavalo de várias cores,
Quero-o depressa, que vou partir.
Esperam-me prados com tantas flores,
Que só cavalos de várias cores
Podem servir.3
As pessoas que passavam, paravam, surpreendidas, para escutar este belo poema e, maravilhadas, não arredavam pé. Deliciadas, escutavam agora a terceira estrofe:
Quero que as rédeas façam prodígios:Voa, cavalo, galopa mais,
Trepa às camadas do céu sem fundo,
Rumo àquele ponto, exterior ao mundo,
Para onde tendem as catedrais.3
Karingana recebeu uma prolongada salva de palmas e, em sinal de agradecimento, bateu as suas lindas asas. Como já se fazia tarde, despediu-se daquele grupo de pessoas, com mais uma estrofe do belo poema de Reinaldo Ferreira, tendo modificado apenas uma palavrinha no fim do quarto verso, para o adaptar a si:
Deixem que eu parta, agora, já,
Antes que murchem todas as flores.
Tenho a loucura, sei o caminho,
Mas como posso partir sozinha
Sem um cavalo de várias cores?3
Todas aquelas pessoas aplaudiram longamente a nossa borboleta declamadora.
Nesse grupo de pessoas, por um espantoso dom de ubiquidade, encontravam-se alguns estudantes marroquinos da licenciatura de Estudos Portugueses de Rabat, que pediram a Karingana um autógrafo.
Então, uma menina que trazia uma caixinha de fósforos retirou de dentro da caixinha um minúsculo embrulho amarelo, abriu-o e mostrou-o a todos, dizendo: «Isto são pétalas de poesia. Leiam-nas e deixem a poesia entrar dentro de vós». Depois, soprou e as pétalas espalharam-se por entre a multidão que, atónita, tentava apanhá-las.
Seguidamente, a menina pegou na folhinha amarela onde as pétalas estavam embrulhadas, aproximou-se da borboleta e disse-lhe: «Toma, podes escrever aqui um autógrafo para nós».
Karingana, comovida, deixou as seguintes palavras na folhinha amarela:
Para a Sanaa, o Mostafa, o Diane, o Badr, o Loukmane, o Loughlimi e o Khalid, que se juntaram a mim nesta homenagem ao poeta Reinaldo Ferreira, faço votos que, através da literatura lusófona, alarguem os vossos conhecimentos sobre a lusa língua e assim, “novos mundos ao mundo irão mostrando”.
Saudações papilionáceas,
Karingana wa Karingana
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Já a borboleta desaparecera nos horizontes do poente da capital moçambicana, quando um senhor se aproximou do grupo de estudantes marroquinos e lhes leu o poema “Cântico Negro” de José Régio, que, depois, ofereceu a cada um, dizendo:
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Os estudantes marroquinos, mudos de espanto, não sabiam o que pensar nem dizer. Apenas pediram que esse senhor lhes pusesse um autógrafo na folha onde estava escrito o poema de Régio. E o senhor, pegando numa pena que um colibri lhe oferecera, escreveu e assinou apenas estas curtas linhas:
Moro numa rua que também tem o nome de um poeta – um poeta de Cabo Verde chamado Daniel Filipe e que escreveu um belo livrinho intitulado A Invenção do Amor.
1 in “O viajante clandestino”, conto da obra Cronicando, de Mia Couto.
2 in “Fábula”, poema da obra Karingana Ua Karingana, de José Craveirinha
3 in “Poemas”, de Reinaldo Ferreira
[N. E. (27/03/2020) – Foram colocadas novas imagens.]
Texto escrito pelo professor João Nogueira da Costa para os seus alunos marroquinos do 1.º ano da Licenciatura em Estudos Portugueses da Faculdade de Letras da Universidade Mohammed V de Rabat, no ano letivo 2012-2013.