Passada que foi a época dos pioneiros que na colonização, sobretudo do Brasil e da África, se guiavam pela opinião de Nebrija, de que «a língua era a companheira do Império», nos tempos mais chegados da primeira metade do século XX, tanto a língua portuguesa como as outras europeias viviam na doce tranquilidade da retórica dos usos linguísticos respeitáveis: o português, como língua materna que era, para as utilidades habituais, o latim para a erudição, a medicina e o direito, o alemão para a filosofia, o francês para a diplomacia e vida social, etc.
Nas colónias, tal como em outros países europeus, fazíamos cumprir as orientações do Abbé Grégoire, da Revolução Francesa, de que era preciso esmagar os patois e impor a língua do Centro.
Nos tempos modernos, com o acender das guerras, sobretudo da de 1939-1445, alterou-se o uso das línguas, postas agora ao serviço de propagandas bélicas e outras. Importância esta que foi alargada a usos diversos na reconstrução da Europa que o plano Marshall possibilitou.
Alterado assim o quadro tradicional da inocência dos usos linguísticos, diversos tipos de política se esboçaram, sobretudo depois que as estratégias políticas englobaram as culturais.
Começaram essas novas políticas com os agrupamentos de países diversos em blocos de poder, aglutinados por uma língua comum, desde que o Presidente Wilson, dos Estados Unidos, lançou a ideia em 1916, passando por diversas formulações até se chegar à Francofonia e à Lusofonia.
É neste contexto de blocos político-linguísticos que se enquadra a conhecida frase de Pessoa «a minha pátria é a língua portuguesa», que outros, como Camus em França, também usaram, com a diferença relevante de que «bloco», em Pessoa, é Império, Quinto Império da Cultura na tradição de Vieira.
E no mesmo contexto e para o mesmo fim foram criadas organizações (Instituto de Alta Cultura, ICALP, Instituto Camões, Alliance Française, British Council, Instituto Cervantes, Goethe Institut) para servirem não só a «defense et illustration» das línguas, mas também a sua expansão, invertendo-se a frase de Nebrija, pois agora é a língua que arrasta consigo o Império, entendido este como simbólico. «Império da Cultura» chamou Pessoa ao nosso, mas sem quinto imperador, como explicou Agostinho da Silva.
Alterado assim o modo de entender a língua, uma nova política linguística se vem estabelecendo entre nós, com etapas bem diversificadas.
A primeira delas teve como objectivo prestigiar sobretudo a nossa cultura e língua, iniciada em 1936 ao dar-se continuidade e desenvolvimento aos leitorados no estrangeiro, inaugurados em 19301.
Uma segunda pode ser identificada a partir dos anos 80, claramente voltada para a prioridade ao ensino e difusão da língua, urgida também pela existência e solidariedade dos países lusófonos.
Uma terceira etapa, provocada pela queda do império soviético e pelo desenvolvimento das comunicações, da globalização e do multiculturalismo, se afirma desde o início dos anos 90 e nos nossos dias.
1. Foi em 1936, com a criação do Instituto para a Alta Cultura, que novo caminho se percorreu até, sensivelmente, ao fim dos anos 80.
A perspectiva seguida foi a do desenvolvimento e multiplicação dos leitorados em Universidades estrangeiras, ao mesmo tempo que se fomentava a investigação científica e se incentivava o intercâmbio de docentes, em simultâneo com a publicação de edições de autores de prestígio, como Gil Vicente ou Camões.
Mais tarde, esta actividade seria complementada com o envio de professores para o estrangeiro para o ensino básico dos filhos dos emigrantes.
Com efeito, desde o primeiro leitorado, de 1930, desempenhado por Leite Pinto, na Sorbonne, que o grande objectivo era desfazer ambiguidades com outras línguas e culturas, e acabar com a fama de menoridade cultural do português.
De modo indignado, relatava o leitor/professor em Montpellier, Vitorino Nemésio, em 1934, em relatório para a Junta de Educação Nacional: «é posição viciosa a que o português ocupa, no entender pouco informado de maior parte dos alunos, no quadro das línguas e literaturas românicas.
A tendência consiste em considerá-lo, sensivelmente, no plano, não direi do Galego, mas do Catalão, isto é: «uma espécie de co-dialecto ou de língua minoritária do castelhano que, mercê de maturação política que se considera, em regra, ligeiramente artificial, tomou a aparência de uma língua e literatura autómonas. Não fazem ideia clara dos oito séculos de maturação de uma cultura portuguesa, nem dos nomes e obras que a preenchem, nem do génio que a marca.»2
Foi sobretudo um esforço para prestigiar a língua e a cultura nacionais, até porque então se viviam tempos de intenso nacionalismo.
À realização deste objectivo se veio juntar outro: o de se apoiar e acompanhar os emigrantes no estrangeiro, facultando aos seus filhos o ensino da nossa língua feito por portugueses enviados de Portugal para os ensinos primário, preparatório e secundário.
Para isso, o «Serviço de Ensino Básico de Português no Estrangeiro», SEBSPE, foi integrado no ICALP, que sucedeu ao Instituto de Alta Cultura, durante os anos de 1980 a 1987.
Foi um esforço gigantesco feito por Portugal, pois não deixa de ser considerável que, em 1989, o ICALP mantivesse nas universidades estrangeiras 132 leitorados, e que o SEBSPE, em 1985, contasse, só na Europa, com 624 professores portugueses em diversos países de emigração.3
2. A segunda etapa foi iniciada nos anos 80 com o grande estímulo da publicação da obra dirigida pelo embaixador francês Philippe Rossillon, intitulada Un Milliard de Latins em l’an 20004, em 1983. Nessa obra que compilava estatísticas das diversas línguas latinas, verificava-se a grande expansão da língua portuguesa no mundo, ultrapassando mesmo a francesa.
A grande divulgação dada pelo ICALP a esses dados, e a sua presença combativa em todos os fóruns internacionais em favor da língua portuguesa, criaram uma dinâmica colectiva que envolveu o próprio Estado.
Dinâmica essa que muito deveu ao esforço que vários professores de português vinham fazendo, especialmente através da sua Associação profissional, chamando a atenção para o modo desleixado e permissivo com que era tratada a nossa língua.
Do mesmo modo, as discussões em torno do projecto de Acordo Ortográfico proposto pelos então sete países lusófonos, em 1986, colocaram na ordem do dia a questão da língua.
De tal modo que o próprio Estado a levou para os programas do Governo e para a levou à Constituição da República, para que nesse diploma fundamental ela tivesse lugar mais digno.
Nas Constituições políticas do Estado Novo, tanto na de 1933 como na revista de 1971, nada vinha referido em relação à língua. Em seu primeiro título e capítulo «Das garantias fundamentais sobre a Nação Portuguesa», apenas se definia como propriedade inalienável o território espalhado pelos vários continentes.
Após a Revolução de Abril, na sua primeira Constituição, de 1976, também nada constava.
Timidamente, na primeira revisão de 1982, já se dispunha, no artigo 74.º, de maneira indirecta e utilitária, que na questão do ensino era preciso «assegurar aos filhos dos emigrantes o ensino da língua portuguesa.» Disposição essa que na revisão de 1989 é ampliada, no seu artigo 9.º referente às etapas fundamentais do Estado, pois uma delas é a de assegurar o ensino e valorização permanente, defender o uso e promover a difusão da língua portuguesa (alínea f).
Com as citadas controvérsias geradas pelo projecto de acordo ortográfico de 1986, mais avultou a importância da língua, até porque, diferentemente dos acordos anteriores, só elaborados ou colaborados entre Portugal e o Brasil, eram agora sete Estados lusófonos a subscreverem, por unanimidade, esse documento.
Só na revisão de 2001, no artigo 11.º, e depois de na revisão de 92 se ter consagrado a protecção e valorização da língua gestual portuguesa (artigo 74.º), é que é estabelecido como um valor em si mesmo, no título, que «A língua oficial é o Português». Referência mesmo assim pobre, pois o reconhecimento do português como língua materna maioritária dos portugueses ajudava a compreender uma das componentes essenciais da cultura e identidade portuguesas, e do seu património.
A revisão de 2004 nada acrescentou.
Tão importante se revelou a afirmação da língua portuguesa, que não é demais lembrar que o Presidente da República, Mário Soares, iniciou o seu segundo mandato em Abril de 1986 com uma homenagem à Língua Portuguesa diante da estátua de Camões, no Chiado, tendo assim justificado esse acto: «No dia em que tomei posse do cargo de Presidente da República, quis honrar a memória de Camões como acto de significado simbólico. Com esse gesto procurei pôr em relevo a continuidade histórica da cultura e da língua portuguesa, e homenagear todos aqueles que, no passado e no presente, têm dignificado essa cultura e essa língua, realizando obras contra as quais o tempo nada pode».5
Atingido assim o auge do reconhecimento, o entusiasmo esfriou, até que, paradoxalmente, esse reconhecimento ocorria quando o contexto cultural e linguístico nacional e internacional mudava substancialmente, com a afirmação e as graves consequências de três novos intervenientes: a globalização, o multiculturalismo, as novas tecnologias da informação, todos eles a exigirem novas situações, novas condicionantes, novas leis.
3. Uma terceira e nova etapa da política linguística se impôs e se impõe nos nossos dias. E também agora os responsáveis pela política de língua andam muito distraídos, pensando e agindo como se continuássemos na fase anterior.
Novas ideias e novas estratégias são, porém, necessárias para enfrentar estas novas realidades.
Antes de mais, tomando consciência de como o quadro linguístico e cultural mudou quase de repente.
Sobretudo a partir do colapso do império soviético em 1989, até as migrações africana e brasileira mudaram de sentido, se é que em tempos de globalização se pode ainda falar em migração, em vez de deslocação de povos num mundo globalizado, desde que Marconi construiu a nova teia de comunicações.
Tal como ocorreu em toda a Europa, ainda com maior intensidade do que entre nós, também Portugal se está a transformar, progressivamente, num melting pot de culturas, línguas, religiões.
A transformação populacional começou logo depois do 25 de Abril de 1974, com a vinda dos africanos e dos brasileiros.
Depois, vieram os povos do Leste da Europa. Assim, de cerca de 50 000 em 1980, passou-se para o dobro; mais de 100 000 em 1975; mais de 200 000 no ano de 2000, perto de 500 000 no final do mesmo ano, isto se considerarmos apenas os migrantes legais, pois os outros são em número dificilmente controlável, talvez mais de 200 000 nessa mesma data.
Os brasileiros, em 2002, entre legais e ilegais, ascenderam a 80 000, sendo os legais africanos lusófonos cerca de 120 000, os de Leste cerca de 200 000. Outros migrantes, em muito menor número, como chineses, indianos e paquistaneses, acentuaram, sobretudo, a diversidade.
Deste modo, populações oriundas de outras raças, culturas, religiões, usos e costumes passaram a preencher 5% da população portuguesa.
Desta massa humana, os emigrantes de Leste (russos, ucranianos, moldavos, romenos em especial) destacam-se pelo seu nível cultural e técnico, integrando-se cada vez mais, e em maior número, nas profissões liberais (p. e., médicos e engenheiros), em contraste com as populações africanas pouco qualificadas, e a viver em situações de pobreza, em bairros periféricos e problemáticos.
É dentro deste mosaico populacional que veio por termo a uma situação portuguesa monocultural e monolingue que uma nova política de língua tem de ser construída, até porque o país se confronta com uma baixa de natalidade que, actualmente, já atingiu nível negativo, num gráfico que deixou de ser ascendente.
Desta globalização, que começou por ser das comunicações, nasceu o fenómeno do multiculturalismo, que nos Estados Unidos já leva mais de dois séculos, e que, quase repentinamente, se apossou da Europa.
Situação esta que cria, inevitavelmente, para os países de acolhimento, problemas não só de convivência e harmonia social, mas também de identidade e soberania. Segundo os teóricos do multiculturalismo, como Will Kymlicka, Andrea Semprini ou Chris Barker, entre os direitos e essenciais dos novos cidadãos estão os da diferença e da identidade, que sempre devem ser respeitados.
Diferença e identidade que passam pelo uso das suas línguas e culturas. E não apenas no seu reconhecimento teórico pelas comunidades de acolhimento, mas também pelo dever de possibilitarem a sua prática.
Com efeito, e em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos6, elaborada por instituições e ONG prestigiadas, em Barcelona, em 1996, são reconhecidos direitos linguísticos específicos tanto para as comunidades (aquelas que já estavam historicamente instaladas no território), como para os grupos (os que são originados pela emigração ou asilo).
Para uns e outros se assinala o direito de serem reconhecidos como membros de uma determinada comunidade linguística, os direitos de falarem as próprias línguas em privado e em público, de usarem os seus próprios nomes e de desenvolverem as suas culturas (artigo 3.º, n.º 1). Direitos a que correspondem deveres das comunidades de acolhimento, tais como o de providenciar o ensino das línguas e culturas desses povos e deles poderem dispor tanto de serviços culturais como do acesso aos meios de comunicação social (artigo 3.º, n.º 2).
Como é óbvio, a esses direitos correspondem também da parte deles o de, em caso algum, entravarem o seu relacionamento com a comunidade de acolhimento, bem como o dever de nela se integrarem (artigo 3.º, n.º 3).
Mais ainda dispõe a Declaração que as novas comunidades e o grupos têm não só o direito mas também o dever de se integrarem e, contrariamente ao que pensam certos obcecados pela globalização, é recomendável que os que chegam sejam assimilados, desde que, conservando os seus valores próprios, essa assimilação não seja forçada, mas de livre escolha (artigo 4.º. n.º 2).
Tal como num díptico ligando e relacionando as línguas com as culturas, a Declaração Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural, de 20017, consagra princípios que, indo ao encontro das negociações mundiais para a liberalização das trocas comerciais que se propõem desenvolver ao máximo as trocas de bens e serviços em todo o mundo, com o objectivo de melhorar o nível de vida nos cinco continentes, essa declaração permitiu que se admitisse o que primeiramente era designado como «excepção cultural», e depois, a partir de 1993, «diversidade cultural».
Se a declaração linguística de Barcelona pretendia sobretudo acautelar os direitos da comunidades e grupos migrantes, a Declaração da Unesco visa acautelar tanto a identidade e os direitos dos países de acolhimento, como as novidades culturais, sobretudo na área do audiovisual. No princípio, a excepção era sobretudo para acautelar, face à concorrência americana, os audiovisuais franceses (cinema, televisão, artes), depois europeus e, por fim, de todos os países de acolhimento, especialmente dos economicamente mais débeis. O interesse era sobretudo económico, mas logo se argumentou com a boa razão de que, sendo os audiovisuais de grande capacidade persuasiva, podiam adulterar ou, mesmo, destruir as identidades de acolhimento.
Uma tal cláusula de excepção vem, aliás, no seguimento das medidas proteccionistas adoptadas por vários Estados, sobretudo desde «a Segunda Guerra Mundial – e sobretudo a partir dos anos 1960 e 1970 – que, em numerosos países, as autoridades públicas anunciaram a sua intenção de continuar, mas com meios substancialmente mais sólidos, os suportes tradicionalmente operados em favor das belas artes, dos ensino artístico e da leitura pública», segundo o estudo de Bernard Gournay8.
Deste modo, segundo a Declaração da Unesco, como consta do seu preâmbulo, a cultura «está mesmo no coração dos debates contemporâneos sobre a identidade, a coesão social e o desenvolvimento de uma economia fundada no saber.»
Este, sim, é o verdadeiro motor de qualquer política linguística e cultural: a salvaguarda da identidade nacional e da sua harmonização com as outras identidades acolhidas. Por isso, o que primeiramente era um problema sobretudo comercial saiu do estatuto de excepção para norma geral de preservação das identidades, por muito que isso pese à globalização económica, social e outras que, se não forem devidamente acauteladas, actuam como rolo compressor das identidades, e da própria liberdade.
Por isso, os doze artigos da Declaração procuram conciliar os Direitos do Homem com a diversidade cultural equacionada entre os dois extremos, o da máxima e total proposição de ideias e diversidades culturais, com o objectivo de permitirem uma grande capacidade de escolha livre, com a coerência identitária de uma comunidade ou grupo que, tendo-se aberto a outros horizontes e possibilidades, tem os meios necessários para não se autodestruir, ou cair no relativismo desagregador e irresponsável.
Lucidamente, o Presidente François Mitterrand declarou no Parlamento Europeu, em Janeiro de 2005: «A excepção cultural repousa na ideia de que obras do espírito não são mercadorias como as outras. Temos a convicção de que a identidade cultural das nossas nações e o direito de cada um dos povos ao desenvolvimento da sua cultura estão em jogo. Queremos defender o pluralismo, a liberdade para todos os países, e de eles não abandonarem a outros os seus meios de representação, isto é, os meios de serem presentes a si mesmos.»9
Considerando, por um lado, as situações económicas, sociais, culturais e políticas impostas por uma globalização que não quer conhecer limites nem barreiras, e, por outro lado, os direitos dos estados-nações, comunidades e grupos culturais, parece óbvio que uma política da língua e da cultura deve ter em conta estes condicionamentos e salvaguardas da globalização e do multiculturalismo, acrescidos das exigências das novas tecnologias da informação.
De entre os problemas levantados por estas exigências, alguns nos merecem especial reflexão, por serem prévios e condicionantes de outros problemas e actuações.
a) Uma política linguístico-cultural diferenciada
Assim, parece claro que, em face do que sociólogos, antropólogos e instituições internacionais prestigiadas recomendam, uma política linguística justa deve apoiar-se tanto no ensino da língua e cultura materna para os naturais do país, como da língua estrangeira para os outros. Para além disso, promover também a língua e cultura das comunidades ou grupos acolhidos.
O que, em relação a estes últimos, não significa, necessariamente, a criação de uma rede paralela do ensino, mas, indubitavelmente, apoio a instituições deles e dos seus países de origem, para que tal aconteça. Apoio este que deveria ser coordenado por uma das organizações já existentes no país para o ensino multicultural, tais como o Secretariado Coordenador do Programa de Educação Multicultural criado em 1991, ou, talvez melhor, o Secretariado Entreculturas, criado depois, em 2001.
É que não bastam as tarefas e serviços de informação e algumas actividades multiculturais nas escolas. É necessária a criação de uma mentalidade multicultural no país, com suas concretizações também no ensino das línguas.
Especialmente eficaz, para se atingir esse objectivo, seria que, à semelhança dos programas da RDP e RTP voltados para África ou de âmbito internacional, se criasse um serviço multicultural, nos canais internos, com o objectivo da mentalização do país. Serviço esse considerado como «serviço público» ou de «direito de antena». Deste modo se satisfaria uma necessidade real, em conformidade com as recomendações das Declarações da Unesco e de Barcelona.
Paralelamente a esta actividade, uma política linguística nacional deve reforçar a faceta identitária da nossa diferença, exprimindo-a especialmente nos livros escolares de texto em que, para além de uma maioria de autores portugueses e lusófonos, houvesse também lugar para autores das comunidades e grupos migrantes.
Semelhante conjunto de textos seria de grande alcance pedagógico tanto para os alunos portugueses como para os outros.
b) Uma política de reciprocidade
Contrariamente ao que pensam os adversários da ideia e realidade «nação» ou «estado-nação», o multiculturalismo veio acentuar a importância e o reforço das identidades nacionais. Parece haver um excesso de zelo por parte de alguns na interpretação do PNUD – Relatório do Desenvolvimento Humano 2004 das Nações Unidas, acentuando demasiado os seus quatro princípios de orientação: que a tradição pode atrasar o desenvolvimento, que respeitar a diferença é essencial, que tanto se pertence à comunidade local como à mundial, que é necessário enfrentar os desequilíbrios políticos e económicos protegendo as culturas mais fracas.
Só na conjugação das duas dinâmicas, as da diferença e identidade nossas em situação maioritária, e as dos outros, é que é possível haver harmonia e progresso.
Se alguma coisa está a perder importância e poder é o Estado, não a Nação, pois a integração na União Europeia leva-nos a transferir para as estruturas da União poderes e competências nas áreas da Economia, da Defesa, do Direito, o que acarreta, naturalmente, uma espécie de compensação do espírito de nacionalidade, ultrapassados que estão os fantasmas dos nacionalismos xenófobos de má memória.
Aliás, alguns complexos de culpa derivados dessas outras políticas xenófobas têm impedido uma política de reforço da identidade portuguesa, que agora em regime democrático pode e deve ser intensificada, dignificando não só os símbolos nacionais do hino e da bandeira, mas, sobretudo, valorizando e prestigiando as nossas tradições culturais, o estudo da nossa história e geografia, que os diversos tipos de internacionalismo ideológico apoucaram ou ignoraram.
Aliás, este procedimento nada tem de singular, pois insere-se na já citada cláusula de «excepção cultural» ou «diversidade cultural».
No plano internacional, impõe-se também uma política linguístico-cultural mais ampla que a tradicional: é preciso que os nossos diplomatas lutem para que, nos países estrangeiros, onde também o fenómeno multicultural engloba o multilinguístico, se proceda da mesma maneira.
É preciso, sobretudo, que o Ministério dos Estrangeiros, sem prejuízo da acção do Instituto Camões, negocie, de governo para governo, escolas, cursos e situações segundo a realidade multicultural, e a lógica da reciprocidade. Isto levará o Ministério a ter uma concepção mais alargada das suas funções.
Do mesmo modo se impõe que, sobretudo no Instituto Camões, haja uma acção concertada com institutos lusófonos e estrangeiros similares para que, nos diversos fóruns internacionais, e segundo plano previamente acordado com as universidades, não falte nunca a presença de um especialista português a defender os pontos de vista lusófonos.
c) Uma reflexão sobre a própria língua portuguesa
Uma terceira tarefa exige a atenção de uma política linguística multilingue e multicultural, a de se adaptar a língua portuguesa à fase actual das novas tecnologias que projectam, cada vez com mais força, a língua falada e popular na língua escrita, provocando um novo entendimento do que se deve entender por correcção e obrigando a uma pedagogia que dê à gramática um papel mais importante na aprendizagem.
A prática do correio electrónico, das conversações nos «chat» e nos «blog», o uso generalizado e permanente dos telemóveis e a prática do SMS, o uso de frases curtas, sincopadas, com abundantes abreviaturas e recurso a ideogramas como os emotion, smiles e as famosas «carinhas» criaram um novo ritmo pela simplificação da construção da frase, a sua brevidade e rapidez.
Surgem, deste modo, muitos erros ortográficos e estrangeirismos, linguagens transversais, excesso da função fática, ao mesmo tempo que avulta, nesse tipo de linguagem, a «função agregadora» dos falantes.
Por outro lado, há que notar que o uso dos novos meios técnicos de telecomunicações está a concorrer para uma unidade maior da língua, tanto no vocabulário como na prosódia, em flagrante contraste com os atropelos sintácticos.
Uma revisão e actualização da política da língua não pode ignorar estes factos, até porque também a interferência das línguas estrangeiras talvez obrigue a rever o que entendemos por estrangeirismos.
Aos linguistas, em especial, cabe uma palavra sobre a pedagogia e didáctica da nossa língua no momento presente.
1 João Trindade, «50 anos ao serviço da Cultura Portuguesa», Revista ICALP, Agosto-Dezembro de 1985, Lisboa, ICALP, p. 7.
2 Fernando Cristóvão e Outros, Nemésio Nemésios, Lisboa, Colibri, p. 220.
3 Anuário Icalp – 1984-1987, Lisboa, ICALP, 1989, pp. 104-108; 190, 191.
4 Philippe Rossillon, Un Milliard de Latins en l’an 2000, Paris, L'Harmattan/Union Latine, 1983.
5 Revista Icalp, n.º 4, Lisboa, Março de 1986, pp. 5-8.
6 Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, Barcelona, Junho de 1996.
7 Declaração Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural, 31.ª Sessão da Conferência Geral, Paris, 2 de Novembro de 2002.
8 Bernard Gournay, Exception Culturelle et Mondialisation, Paris, Presses de Sciences Po, 2002, p.16.