Artigo do historiador goês Teotónio R. de Souza, publicado no Semanário de 20 de Fevereiro de 2009, sobre os 200 anos do nascimento de Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara.
Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara foi filho de uma linhagem não portuguesa, uma mistura de famílias italiana e espanhola. Nasceu em Portugal, em Arraiolos, região famosa pelos seus tapetes, em 23 de Junho de 1809. (…)
Cunha Rivara, além de uma rua com o seu nome, tem também um agrupamento de escolas a ele dedicado. Embora formado em Medicina pela Universidade de Coimbra, tal como fora o caso do seu pai, começou a sua carreira como professor de Filosofia nas escolas, e serviu como bibliotecário na Biblioteca Pública de Évora. Foi eleito deputado para a Real Câmara dos Deputados em 1853, e terminou a sua carreira como secretário do Governo e comissário de Estudos na Índia Portuguesa. Ficou quase 22 anos na Índia e regressou a Portugal em 1877, onde morreu dois anos depois, sem qualquer sinal visível de reconhecimento público. Não era de admirar perante a tradição portuguesa de ciúme e inveja que o célebre jesuíta luso-brasileiro António Vieira descreveu no seu estilo inimitável: «Lusitânia, assim chamada, porque não deixa a ninguém luzir.» Este será o primeiro de uma série de artigos que lhe irei dedicar, no decorrer deste ano, para lembrarmos este administrador-historiador que deixou a sua marca em Goa, combinando patriotismo com investigação e estudos.
Ao contrário de portugueses com mentalidade colonial e interessados em implantar a língua portuguesa, ignorando ou desprezando as culturas nativas, Cunha Rivara acreditava que a língua portuguesa só podia ser mais bem difundida em Goa através das línguas vernáculas dos goeses, nomeadamente o concani e o marata, como meio da instrução pública. Logo após a sua chegada a Goa, Cunha Rivara transmite esta sua convicção numa conferência de inauguração da Escola Normal em Nova Goa (Panjim), em 1 de Outubro de 1856. O texto da sua conferência saiu publicado no Boletim do Governo, n.º 78.
Dois anos mais tarde, em 1858, produziu o seu Ensaio Histórico da Língua Concani. Ao contrário de muitos outros textos portugueses que não encontraram tradutores, A. K. Priolkar decidiu incluir uma tradução do Ensaio como Parte II do seu livro The Printing Press in India (Bombay, Marathi Samshodhana Mandala, 1958, pp. 141-236) para comemorar o centenário da sua publicação, e como parte das celebrações do 4.º centenário da introdução da invenção de Gutenberg em Goa.
Campanha contra o concani
Infelizmente, A. K. Priolkar procurou puxar a brasa à sua sardinha, fazendo um aproveitamento ideológico para a sua campanha contra o concani. Defendia que o concani era dialecto ou versão corrupta do marata. As opiniões do orientalista Robert X. Murphy e do carmelita italiano Francis Xavier, citadas por Cunha Rivara, serviam bem as expectativas de Priolkar. A vivência e os conhecimentos culturais de Cunha Rivara na Península Ibérica fizeram-no mais sábio, se não era mera prudência respeitar a semelhança e a distinção do marata e do concani, desenhando um paralelo com as línguas espanhola e portuguesa.
O Ensaio de Cunha Rivara deveria ser divulgado entre os jovens nas escolas de Goa para ser conhecido do público comum uma versão fiável das vicissitudes da língua concani durante o domínio colonial português.
Até quase 1684 a Igreja Católica em Goa estimou e activamente cultivou a língua concani como um meio eficaz da pregação do cristianismo e exercício pastoral. Os decretos dos cinco concílios provinciais da Igreja em Goa, entre 1567 e 1606, bem como a constituição da Arquidiocese de Goa e instruções das ordens religiosas aos seus sacerdotes nas paróquias, insistiram sempre na necessidade de produzir catecismos, confessionários, vocabulários e gramáticas que permitissem aos missionários interagir com os naturais.
Ironicamente, foi durante esta fase aparentemente positiva que o concani absorveu uma grande dose da influência portuguesa. Enquanto os colonizadores podem vê-lo como o enriquecimento do concani, os linguistas indianos (inclusive S. R. Dalgado na sua Introdução ao seu Dicionário Português-Concani, Bombaim, 1905, páginas XV-XVI) viram este facto como enfraquecimento da língua.
A perda do «cheiro da santidade»
Cunha Rivara atribui a modificação da atitude dos missionários face à língua concani a partir do século XVII à falta de zelo e à perda do «cheiro da santidade». Cunha Rivara, bem como a maior parte dos investigadores até à data, inclusive o jesuíta Délio Mendonça, o actual director do Xavier Centre of Historical Research em Goa, que na sua tese de doutoramento publicada recentemente, Conversions and Citizenry (2002), não conseguiu ver a conexão entre o conflito crescente entre os religiosos brancos e o número crescente dos clérigos nativos que reivindicavam o seu legítimo lugar na
hierarquia e no serviço pastoral.
O descontentamento do clero nativo e a sua exigência para assumir os cargos de párocos foram vistos como uma ameaça ao seu sustento pelas ordens religiosas, que resistiram com unhas e dentes às pretensões do clero nativo. Apelaram à coroa como autoridade legítima sobre a Igreja do Padroado, ultrapassando a autoridade dos arcebispos locais, que, como era o caso do Frei Brandão em 1680, mostrava-se favorável aos padres nativos.
É óbvio neste contexto que os franciscanos e os jesuítas promoveram e defenderam a legislação anticoncani de 1684 para privar os clérigos nativos da sua vantagem linguística e cultural perante os paroquianos.
Há correspondência inédita dos franciscanos da província goesa de Bardez com a coroa portuguesa, conservada na Biblioteca Nacional de Lisboa. Descrevem os padres naturais como bêbados e devassos, com ódio aos homens de pele branca (linguagem realmente racista mesmo no nosso tempo) por temerem que eles os denunciassem às autoridades! O único objectivo deste discurso racista foi convencer o rei de que os padres naturais não eram moralmente e politicamente competentes e dignos para se lhes confiar as paróquias.
Apesar do conhecimento deste passado e as implicações racistas da legislação anticoncani, o patriotismo de Cunha Rivara não lhe permitia às vezes ser fiel às tarefas de historiador imparcial. Cunha Rivara ocupou o cargo de secretário do governo durante os tempos turbulentos do Motim dos Cipaios (1857) e a sua preocupação esteve direccionada para o fluxo dos rebeldes da Índia britânica para a jurisdição portuguesa do Estado da Índia. Os Arquivos de Goa guardam a correspondência classificada como Estrangeiros, onde se pode investigar mais sobre esse assunto. A montagem da rede de telégrafo nessa altura veio ajudar na coordenação das operações «antiterroristas» entre os dois poderes coloniais. As autoridades portuguesas na Índia colaboraram com o poder britânico nessa crise, mas não cederam os rebeldes refugiados em Goa ao braço judicial inglês. Concordaram que fossem deportadas para Timor algumas centenas de rebeldes (incluindo famílias inteiras).
A deportação foi efectuada utilizando transporte marítimo provido pelos ingleses, que queriam assegurar que os elementos rebeldes chegassem ao longínquo destino. A coroa britânica, grata pelos serviços prestados por Cunha Rivara, queria homenageá-lo com condecoração, o que não veio a acontecer devido ao veto do Governo português.
É nesse contexto do Motim dos Cipaios e dos goeses que serviam no Exército Marata, como era o caso dos Pintos de Candolim, que Cunha Rivara se dedicou ao estudo de uma conjuração dos sacerdotes e militares goeses, que um século antes (1757) planeavam expulsar os portugueses de Goa.
Cunha Rivara intitulou o seu livro A Conjuração dos Pintos, embora os Pintos não fossem os protagonistas da conjuração. Teremos mais sobre este assunto e outros nos artigos que se seguirão. Para já, concluo com referência passageira a uma polémica que Cunha Rivara lançou, sugerindo no seu ensaio que a casta chardó entre os católicos goeses talvez fosse uma versão católica da subcasta karadhe de brâmanes na região Maharashtra-Karnataka.
in Semanário de 20 de Fevereiro de 2009