Já que, no amável convite para participar nesta iniciativa do Congresso Internacional de Literaturas Africanas (convite que muito agradeço e iniciativa que muito louvo), havia uma alusão explícita e simpaticamente provocadora ao meu opúsculo intitulado Para uma Crítica da Razão Lusófona: Onze Teses sobre a CPLP e a Lusofonia (Edições Universitárias Lusófonas, 2.ª Ed., 2002), será também com uma tese (disse uma, não onze, tranquilizem-se!), decerto menos simpaticamente provocadora, que avançarei para a temática que me propus desenvolver.
E essa «tese», que precisará de ser demonstrada, estará (como deve!) aberta não só a todas as “pró-teses” e “para-teses”, mas também e até mais interessantemente a todas as “antiteses”, em ordem àquela “síntese” final, que, no verso do poeta da Lusofonia por excelência, é bom que nunca deixe de ser «o porto sempre por achar»! (Fernando Pessoa, Mensagem).
Essa tese paradoxal e antipaticamente provocatória como referi (...) é a seguinte:
Mais que projecto ou questão cultural e até linguístico-literária, a Lusofonia é, obviamente, um projecto ou uma questão de Língua e, embora talvez menos obviamente, sobretudo um projecto ou uma questão de desenvolvimento economológico e de estratégia geopolítica.
1.
Pressuposto heterodoxo da afirmação de que «a Lusofonia não é prioritariamente um projecto ou uma questão cultural e até linguístico-literária», é a contestação da “certeza”, da “evidência” e do “axioma” (tudo entre aspas) de que «a Língua é a expressão da Cultura de um Povo!»... E uma primeira consequência da contestação de tal “evidência” foi, para mim, a não aceitação daquilo que, há uns anos atrás, para todos, constituía um “dado adquirido” (e que ainda hoje, por vezes, se ouve, mas penso que já só por inércia!), a saber, a existência de «literaturas africanas de expressão portuguesa», que eu fui paulatinamente ajudando a substituir por literaturas africanas de língua portuguesa.
Ou seja, a língua, de mera «expressão cultural de um povo» (no caso, o Povo Português), que inegavelmente também é, começou a ser vista também como o possível instrumento de comunicação de vários povos e de várias culturas e de várias literaturas, etc. e utilizável para a obtenção dos mais variados objectivos, como, por exemplo, a unificação de um País, a construção de um Estado, a afirmação de um Espaço (na circunstância, o “Espaço Lusófono”), etc. E quem, hoje, ousaria falar de «Países Africanos de Cultura ou de Literatura Portuguesas», em vez de Países Africanos de Língua Portuguesa? Acrescentarei que esta visão “meramente” instrumental da Língua Portuguesa me foi pela primeira vez inspirada pelo grande e inesquecível Mestre Manuel Ferreira, não obstante os títulos historicamente situados das suas mais que todas pioneiras obras de «Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa»!
2.
Como projecto ou questão de Língua (o que é algo diverso da questão propriamente linguística e literária), a Lusofonia tem de ser encarada, antes de mais, como a justa avaliação e a consequente valorização da Língua Portuguesa no mundo contemporâneo. Foi, aliás, neste sentido que, em Carta Aberta ao Presidente Lula, me permiti chamar a atenção para o facto de o Espaço Lusófono utilizar uma mesma língua, a qual, muito mais que a Última flor do Lácio, inculta e bela, segundo os famosos versos de Olavo Bilac, é hoje, objectivamente e segundo a não menos famosa análise e profecia de Fernando Pessoa, «uma das poucas línguas potencialmente universais do século XXI» (enquanto língua falada em todos os Continentes e com um grande País, o Brasil, seu falante), podendo tornar-se um instrumento inigualável de comunicação e de desenvolvimento entre os homens.
A propósito do que designei «justa avaliação e consequente valorização da Língua Portuguesa no mundo contemporâneo», tal avaliação e valorização devem começar nos próprios lusófonos, Cidadãos e Estados, superando complexos de inferioridade não realistas e identificando os verdadeiros problemas e tarefas de uma política efectiva da Língua Portuguesa. Darei, a granel e sem nenhuma ordem hierárquica ou qualquer outra, alguns exemplos, principiando com o exemplo da Universidade Lusófona. De início, eu mesmo alertava recorrentemente, para evitar malentendidos desvirtuadores: «A Universidade Lusófona não é uma Universidade da Língua Portuguesa, mas sim uma Universidade de Língua Portuguesa..., porque se encontra num Espaço onde se fala o Português e não o Chinês, o Russo, o Catalão, etc.». Progressivamente, sem cair no patrioteirismo que até na célebre frase de Fernando Pessoa «A minha Pátria é a Língua Portuguesa» se pode infiltrar, fui adquirindo uma dimensão, não mais patriótica mas mais objectiva, e a Universidade Lusófona, sem deixar de ser, essencialmente, uma Universidade de Língua Portuguesa, não teve pejo em tornar-se também, no contexto de uma séria "Crítica da Razão Lusófona”, uma Universidade da Língua Portuguesa, e isto sem cair em nenhuma espécie de vetero ou neocolonialismo, de vetero ou neoprovincianismo ou de vetero ou neopatrioteirismo .
E não se trata de ceder à tentação fácil de afirmar que um dos aspectos da senilmente caracterizada “geração rasca” (não era Horácio que chamava, ao contrário, à sua maneira e no seu latim refinado, “rascas” aos eternos «laudatores temporis acti»..., aos eternos «louvadores do antigamente do seu tempo»?) é que... já não sabe falar e escrever correctamente o Português (o que até é verdade, mas por outras causas que ultrapassam o entendimento destes acusadores facilistas). Pela mesma ordem de razões, também a Comunidade dos Países e Povos de Língua Portuguesa deverá ser igualmente uma Comunidade dos Países e Povos da Língua Portuguesa, a qual, uma vez findos os tempos do colonialismo e na dinâmica da pertinente “crítica da razão lusófona”, pode deixar de ser um instrumento de dominação para se tornar um instrumento único e insubstituível de cooperação interlusófona e internacional.
Assim entendida, a Língua Portuguesa poderá e deverá tornar-se uma das grandes (senão a maior das) riquezas de todos os Países e Povos da CPLP e todo o investimento na sua cultura e difusão aparece como o investimento mais inteligente e mais rentável. Por exemplo, o mínimo de inteligência (até económica) que os Estados Lusófonos, designadamente Portugal e Brasil, poderiam e deveriam mostrar era assegurar a existência de Professores da Língua Portuguesa em todos os Espaços do Espaço Lusófono e no máximo possível de Espaços do Mundo Contemporâneo.
Por exemplo, o mínimo de inteligência – até económica – que os Estados Lusófonos, designadamente Portugal e Brasil, poderiam e deveriam mostrar, ultrapassando os ridículos preciosismos e provincianismos das guerras do alecrim e da manjerona das “Academias” e dos “Intelectuais” de ambas as praças (portuguesa e brasileira), era assegurar o cumprimento de um acordo ortográfico lusófono (o já proposto ou outro, mas que seja!), prova dos nove e condição 'sine qua non' de qualquer “Lusofonia da Língua”, tanto no âmbito dos espaços lusófonos como fora deles; por exemplo, o mínimo de inteligência – até económica – que os Estados Lusófonos, designadamente Portugal e Brasil, poderiam e deveriam mostrar era assegurar, absolutamente, a utilização da Língua Portuguesa em todos os lugares e encontros internacionais (políticos, turísticos e quaisquer outros!) e não permitir, sob nenhum pretexto, que uma das línguas mais faladas do mundo seja constantemente reduzida ao lugar e papel de uma língua insignificante.
E quando é que os Estados Lusófonos, designadamente Portugal e Brasil, darão um mínimo de vida e actividade ao (já defunto ou nunca vivo) “Instituto Internacional de Língua Portuguesa” e outras Instituições do género? Nas palavras sentidas da actual Direcção da Sociedade da Língua Portuguesa, «Porque é que a nossa língua, a sexta do mundo em número de populações, não é a sexta mais falada? Que políticas têm falhado?»
E bastaria dar exemplos grosseiramente caricatos como o seguinte: na cerimónia em que o então considerado melhor futebolista do mundo (Ronaldo, lusófono) recebeu do Presidente da FIFA (João Havelange, lusófono), sob os olhares do considerado melhor futebolista de sempre (Pelé, lusófono), o respectivo prémio, alguém ouviu uma palavra em português?
E que dizer quando, entrevistado em Paris, o luso-futebolista Figo, ou, em conferência de Imprensa no Porto, o luso treinador Carlos Queiroz tentaram exprimir-se em espanhol, embora não ultrapassassem as fronteiras do ...”Espanholês”?
E como entender que o Brasil permita que os media internacionais (e até nacionais!) digam “Mercosur” e não Mercosul, embora seja ele o membro incontornavelmente hegemónico de tal organização?
E será que, a nível da América do Sul, as potencialidades estratégicas unitárias do “Português-Brasileiro” (que, além do resto, cumpre os citados requisitos que Fernando Pessoa exigia para que uma língua possa tornar-se uma «língua universal»: ser falada em todas as partes do mundo e ... ser a língua de um «grande País»...) não conseguirão impor-se às debilidades múltiplas do “Espanhol-Sulamericano”, de modo que, num futuro mais ou menos breve, se venha a falar, em todas essas paragens, muito menos o “Portunhol” do que o “Espanholês” ou, melhor ainda, se venha a falar simplesmente o “Português-Brasileiro”? A resposta negativa marcaria o momento da certidão de óbito e do “Adiós” à Lusofonia da Língua Portuguesa e ao “Brasil, País do Futuro”.
Quem não se respeita a si próprio não merece o respeito de quem quer que seja!
No recomeço, há apenas alguns meses, das suas actividades, depois de um ano de interrupção forçada, a partir das instalações cedidas pela Universidade Lusófona, o Ciberdúvidas (que saúdo e a que auguro os maiores êxitos) publicou um emblemático texto de José Saramago, emblematicamente intitulado: «Uma Língua que não se defende, morre».
Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça, quem tem olhos para ler, que leia e quem tem responsabilidades para agir, que aja!
3.
É enquanto projecto de geostratégia socio-economico-política que a Lusofonia tem a sua primordial razão de ser, para realização própria de todos os Países e Povos Lusófonos e como contributo para a realização do “Fenómeno Humano” universal.
Para a descoberta e a prática sadias e descomplexadas desta vertente geostratégica ou geopolítica da Lusofonia, que dá sentido e conteúdo a todas as outras, essencial é o recurso permanente a uma «Crítica da Razão Lusófona», a qual, à semelhança do que o filósofo Kant pretendeu fazer tanto para a "Razão Pura" como para a “Razão Prática”, estabeleça as condições de legitimidade, de possibilidade, de necessidade e de urgência da construção da Lusofonia, que, também kantianamente, poderiam intitular-se de «Prolegómenos a toda a Lusofonia Futura».
Aqui e agora, até para fazer jus e dar continuidade à dimensão algo herética e muito deslocada da minha intervenção num Congresso de Literaturas Africanas, e sem prejuízo da importância essencial de outros Países e Povos Lusófonos, como, por exemplo, a incompreensivelmente auto e hetero-esquecida Galiza, de algum modo a origem e a mãe de toda a Lusofonia, e Angola, destinada a tornar-se uma Nação de referência no Continente africano e possivelmente o mais lusófono de todos os Países e Povos de Língua Portuguesa, limitar-me-ei a alguns comentários breves sobre os casos da Lusofonia de Portugal e do Brasil, não só por razões de tempo, mas também porque da parafernália mitológica luso-brasileira fazem parte esses dois indestrutíveis mitos que dão pelo nome do «passado glorioso de Portugal» e do não menos «glorioso futuro do Brasil», e porque, sem prejuízo de todo o lugar e papel dos outros Países e Povos Lusófonos, Portugal e Brasil têm de ser, nas presentes condições, os primeiros grandes motores da Lusofonia e serão os grandes responsáveis históricos do seu possível êxito e do seu não impossível fracasso (desgraçadamente, as actuais classes dirigentes tanto de Portugal como do Brasil parecem longe de estar ao nível deste desafio histórico).
Relativamente a Portugal e para além de um “imperial-saudosismo” ou de um “colonial-complexismo” que relevam mais da psicanálise que de qualquer análise económica ou política, há que ressaltar o nauseabundo provincianismo que desde há tempos venho chamando a “doença infantil do europeísmo” ou a “concepção novo-riquista, pacóvia, discipular e Schengeniana da integração europeia de Portugal”, como se, por ser e para ser Europeu, Portugal devesse deixar de ser luso e lusófono e como se até não fosse a Lusofonia o grande e específico peso de Portugal «na balança da Europa e do Mundo».
Com esta doença infantil do Europeísmo ou esta concepção novo-riquista, pacóvia, discipular e schengeniana da integração europeia de Portugal é perfeitamente compatível a visão americano-atlantista e otaniana do Ministério dos Negócios Estrangeiros Português, cuja cegueira lusófona tem sido à prova de todas as mudanças do respectivo titular e parece verdadeiramente configurar um triste “desígnio nacional”... A este propósito apetece-me glosar recentes afirmações do Presidente Jorge Sampaio (cujas lições parecem, afinal e felizmente, ser mais eficazes do que geralmente se pensava e se dizia...) ao dizer que «Portugal não tem futuro fora do quadro europeu», acrescentando que, no quadro europeu, Portugal não tem futuro fora do «quadro lusófono».
Relativamente ao Brasil, tem sido notória a insensibilidade para não dizer alergia lusófona generalizada de todas as suas elites, que não se dão conta de que, na geopolítica multipolar que se desenha e se deseja, a Lusofonia constitui chance única para o Brasil poder vir a ser alguém no concerto das grandes potências do século XXI. Não haverá ninguém que consiga abrir os olhos do Povo Brasileiro a este axioma tão simples como cheio de consequências:
Sem Brasil não haverá Lusofonia, mas também sem Lusofonia não haverá Brasil, que valham a pena!
Como, com alguma solenidade mas sem nenhum exagero e possivelmente também sem nenhum efeito, tive ocasião de dizer na maior metrópole lusófona do Mundo que é São Paulo, aquando das celebrações dos 500 anos do Brasil: «A Lusofonia ou será brasileira ou nunca será; o Brasil ou será lusófono ou nunca será! Como a Lusofonia ainda não foi brasileira e como o Brasil ainda não foi lusófono, nem uma nem outro ainda simplesmente foram nestes primeiros 500 anos. Aguardemos e votemos pelos próximos 500, para que, no século XXI, nem o Brasil nem a Lusofonia percam a sua oportunidade histórica!»
O Brasil, por ser e para ser o terceiro grande pilar autónomo do Mundo Ocidental, ao lado da União Europeia e dos Estados Unidos, não precisa de deixar de ser nem pode deixar de ser “brasileiro” e “lusófono”.
Quando assumirá o Brasil plena consciência das suas virtualidades e da sua obrigação histórica de, enquanto grande potência potencial do século XXI, cumprir a sua missão não só de indispensável motor da Lusofonia mas também, e simultaneamente, de reequilibrador, a nível universal, juntamente com outras grandes potências como a Europa, a Rússia, a China e a Índia, dos mais que evidentes e trágicos usos e abusos da autodeclarada e hetero-aceite única super-potência actual que são os Estados Unidos da América do Norte?
Uma tal Lusofonia e um tal Espaço Lusófono em nada se opõem, antes pelo contrário, não só ao diálogo omnitotidimensional com os outros espaços humanos e geopolíticos do mundo contemporâneo como também, especificamente, aos reais ou eventuais processos em curso da “mercosulização" ou até "alcaização" do Brasil (desde que respeitando as soberanias de todos, Lula 'dixit'!), da “Aliança Mercosul-União Europeia” (tão desejável, tão dificultada por Bruxelas e tão mal entendida por Lisboa!), da Integração Europeia de Portugal (desde que ultrapassando a referida «doença infantil do novo luso-europeísmo»), das várias Integrações Regionais dos Países e Povos Africanos e Asiáticos de Língua Portuguesa, de todas as "Aculturações das Diásporas de todos os Lusófonos" e da "Globalização Societal à Escala Planetária”, opondo-se, sim e frontalmente, à “Loucura Terrorista” e à “Histeria Antiterrorista” que o dia 11 de Setembro de 2001 despoletou nos Estados Unidos e na Humanidade e que, uma e outra, constituem, por razões diversas mas com possíveis idênticos resultados, sérias ameaças de regresso à barbárie, mediante o incumprimento ou o esquecimento da tão longa e tão difícil conquista que foram o Estado Democrático de Direito e o primado do Direito Internacional sobre a força bruta bem como da única e para todos (“terroristas”, “não-terroristas” e “antiterroristas”, incluindo qualquer potência ou superpotência de ontem, de hoje ou de amanhã) obrigatória “Carta Magna” da Civilização que é a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Só uma tal Lusofonia assim “cultural”, “linguística” e “literária” e assim “geostratégica e geopolítica” poderá tornar-se a via real, senão única, de desenvolvimento humano sustentável e de legítima afirmação internacional de todos os Países e Povos de Língua Portuguesa, assim aparecendo também que, mais que projecto ou questão cultural e até linguistico-literária, a Lusofonia é, obviamente, um projecto ou uma questão de Língua e, embora talvez menos obviamente, sobretudo um projecto ou uma questão de desenvolvimento economológico e de estratégia geopolítica.
«Q.E.D., quod erat demonstrandum», e que espero eu tenha conseguido demonstrar e, se não convencer, pelo menos fazer passar a minha convicção.
Texto lido no Congresso Internacional de Literaturas Africanas, realizado em Coimbra, entre 8 e 11 deste mês de Outubro